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Teste Markov
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| DOM CASMURRO | |
| POR | |
| MACHADO DE ASSIS | |
| DA ACADEMIA BRAZILEIRA | |
| H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR | |
| RUA MOREIRA CEZAR, 71 | |
| RIO DE JANEIRO | |
| 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6 | |
| PARIZ | |
| I | |
| Do titulo. | |
| Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no | |
| trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e | |
| de chapéo. Comprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e | |
| dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os | |
| versos póde ser que não fossem inteiramente maus. Succedeu, porém, que | |
| como eu estava cançado, fechei os olhos tres ou quatro vezes; tanto | |
| bastou para que elle interrompesse a leitura e mettesse os versos no | |
| bolso. | |
| --Continue, disse eu accordando. | |
| --Já acabei, murmurou elle. | |
| --São muito bonitos. | |
| Vi-lhe fazer um gesto para tiral-os outra vez do bolso, mas não passou | |
| do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes | |
| feios, e acabou alcunhando-me _Dom Casmurro._ Os visinhos, que não | |
| gostam dos meus habitos reclusos e calados, deram curso á alcunha, que | |
| afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anecdota aos amigos da | |
| cidade, e elles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: «Dom | |
| Casmurro, domingo vou jantar com você.»--«Vou para Petropolis, Dom | |
| Casmurro; a casa é a mesma da Rhenania; vê se deixas essa caverna do | |
| Engenho Novo, e vae lá passar uns quinze dias commigo.»--«Meu caro Dom | |
| Casmurro, não cuide que o dispenso do theatro amanhã; venha e dormirá | |
| aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe | |
| dou moça.» | |
| Não consultes diccionarios. _Casmurro_ não está aqui no sentido que | |
| elles lhe dão, mas no que lhe poz o vulgo de homem calado e mettido | |
| comsigo. _Dom_ veiu por ironia, para attribuir-me fumos de fidalgo. | |
| Tudo por estar cochilando! Tambem não achei melhor titulo para a minha | |
| narração; se não tiver outro d'aqui até ao fim do livro, vae este | |
| mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. | |
| E com pequeno esforço, sendo o titulo seu, poderá cuidar que a obra | |
| é sua. Ha livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem | |
| tanto. | |
| II. | |
| Do livro. | |
| Agora que expliquei o titulo, passo a escrever o livro. Antes disso, | |
| porém, digamos os motivos que me põem a penna na mão. | |
| Vivo só, com um creado. A casa em que moro é propria; fil-a | |
| construir de proposito, levado de um desejo tão particular que me | |
| vexa imprimil-o, mas vá lá. Um dia, ha bastantes annos, lembrou-me | |
| reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de | |
| Matacavallos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquella outra, | |
| que desappareceu. Constructor e pintor entenderam bem as indicações | |
| que lhes fiz: é o mesmo predio assobradado, tres janellas de frente, | |
| varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a | |
| pintura do tecto e das paredes é mais ou menos egual, umas grinaldas de | |
| flores miudas e grandes passaros que as tomam nos bicos, de espaço a | |
| espaço. Nos quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro | |
| das paredes os medalhões de Cesar, Augusto, Nero e Massinissa, com os | |
| nomes por baixo... Não alcanço a razão de taes personagens. Quando | |
| fomos para a casa de Matacavallos, já ella estava assim decorada; vinha | |
| do decennio anterior. Naturalmente era gosto do tempo metter sabor | |
| classico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é tambem | |
| analogo e parecido. Tenho chacarinha, flôres, legume, uma casuarina, um | |
| poço e lavadouro. Uso louça velha e mobilia velha. Emfim, agora, como | |
| outr'ora, ha aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com | |
| a exterior, que é ruidosa. | |
| O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na | |
| velhice a adolescencia. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi | |
| nem o que fui. Em tudo, se o rosto é egual, a physionomia é differente. | |
| Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos | |
| das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que | |
| aqui está é, mal comparando, semelhante á pintura que se põe na barba e | |
| nos cabellos, e que apenas conserva o habito externo, como se diz nas | |
| autopsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte | |
| annos de edade poderia enganar os extranhos, como todos os documentos | |
| falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; | |
| todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto ás | |
| amigas, algumas datam de quinze annos, outras de menos, e quasi todas | |
| creem na mocidade. Duas ou tres fariam crer nella aos outros, mas a | |
| lingua que falam obriga muita vez a consultar os diccionarios, e tal | |
| frequencia é cançativa. | |
| Entretanto, vida differente não quer dizer vida peor; é outra cousa. | |
| A certos respeitos, aquella vida antiga apparece-me despida de muitos | |
| encantos que lhe achei; mas é tambem exacto que perdeu muito espinho | |
| que a fez molesta, e, de memoria, conservo alguma recordação doce e | |
| feiticeira. Em verdade, pouco appareco e menos falo. Distracções raras. | |
| O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo | |
| mal. | |
| Ora, como tudo cança, esta monotonia acabou por exhaurir-me tambem. | |
| Quiz variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudencia, | |
| philosophia e politica acudiram-me, mas não me acudiram as forças | |
| necessarias. Depois, pensei em fazer uma _Historia dos Suburbios_, | |
| menos secca que as memorias do padre Luiz Gonçalves dos Santos, | |
| relativas á cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, | |
| como preliminares, tudo arido e longo. Foi então que os bustos pintados | |
| nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que elles não | |
| alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da penna e contasse | |
| alguns. Talvez a narração me désse a illusão, e as sombras viessem | |
| perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do _Fausto: Ahi | |
| vindes outra vez, inquietas sombras...?_ | |
| Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a penna na | |
| mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande Cesar, que me incitas | |
| a fazer os meus commentarios, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao | |
| papel as reminiscencias que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que | |
| vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos | |
| a evocação por uma celebre tarde de Novembro, que nunca me esqueceu. | |
| Tive outras muitas, melhores, e peores, mas aquella nunca se me apagou | |
| do espirito. É o que vás entender, lendo. | |
| III | |
| A denuncia. | |
| Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e | |
| escondi-me atraz da porta. A casa era a da rua de Matacavallos, o mez | |
| Novembro, o anno é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as | |
| datas á minha vida só para agradar ás pessoas que não amam historias | |
| velhas; o anno era de 1857. | |
| --D. Gloria, a senhora persiste na ideia de metter o nosso Bentinho no | |
| seminario? É mais que tempo, e já agora póde haver uma difficuldade. | |
| --Que difficuldade? | |
| --Uma grande difficuldade. | |
| Minha mãe quiz saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes | |
| de concentrarão, veiu ver se havia alguem no corredor; não deu por mim, | |
| voltou e, abafando a voz, disse que a difficuldade estava na casa ao | |
| pé, a gente do Padua. | |
| --A gente do Padua? | |
| --Ha algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não | |
| me parece bonito que o nosso Bentinho ande mettido nos cantos com a | |
| filha do _Tartaruga_, e esta é a difficuldade, porque se elles pegam de | |
| namoro, a senhora terá muito que lutar para separal-os. | |
| --Não acho. Mettidos nos cantos? | |
| --É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quasi | |
| que não sae de lá. A pequena é uma desmiolada; o pae faz que não vê; | |
| tomara elle que as cousas corressem de maneira, que... Comprehendo o | |
| seu gesto; a senhora não crê em taes calculos, parece-lhe que todos têm | |
| a alma candida... | |
| --Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi | |
| nada que faça desconfiar. Basta a edade; Bentinho mal tem quinze annos. | |
| Capitú fez quatorze á semana passada; são dous creançolas. Não se | |
| esqueça que foram criados juntos, desde aquella grande enchente, ha | |
| dez annos, em que a familia Padua perdeu tanta cousa; d'ahi vieram as | |
| nossas relações. Pois eu hei de crer...? Mano Cosme, você que acha? | |
| Tio Cosme respondeu com um «Ora!» que, traduzido em vulgar, queria | |
| dizer: «São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu | |
| divirto-me; onde está o gamão?» | |
| --Sim, creio que o senhor está enganado. | |
| --Póde ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei | |
| senão depois de muito examinar... | |
| --Em todo caso, vae sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de | |
| mettel-o no seminario quanto antes. | |
| --Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o | |
| principal. Bentinho ha de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois | |
| a egreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo | |
| presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o imperio... | |
| --Governou como a cara d'elle! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos | |
| rancores politicos. | |
| --Perdão, doutor, não estou defendendo ninguem, estou citando. O que eu | |
| quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil. | |
| --Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao | |
| pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer | |
| missa atraz das portas. Mas, olhe cá, mana Gloria, ha mesmo necessidade | |
| de fazel-o padre? | |
| --É promessa, ha de cumprir-se. | |
| --Sei que você fez promessa... mas, uma promessa assim... não sei... | |
| Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina? | |
| --Eu? | |
| --Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é | |
| que sabe do todos. Comtudo, uma promessa de tantos annos... Mas, que | |
| é isso, mana Gloria? Está chorando? Ora esta! Pois isto é cousa de | |
| lagrimas? | |
| Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou | |
| e foi ter com ella. Seguiu-se um alto silencio, durante o qual estive | |
| a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não | |
| pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina | |
| exhortava: «Prima Gloria! prima Gloria!» José Dias desculpava-se: «Se | |
| soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo | |
| affecto, para cumprir um dever amargo, um dever amarissimo...» | |
| IV | |
| Um dever amarissimo! | |
| José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental | |
| ás ideias; não as havendo, servir a prolongar as phrases. Levantou-se | |
| para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito á | |
| parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engommadas, presilhas, | |
| rodaque e gravata de mola. Foi dos ultimos que usaram presilhas no Rio | |
| de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe | |
| ficassem bem esticadas. A gravata de setim preto, com um aro de aço | |
| por dentro, immobilisava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de | |
| chita, veste caseira o leve, parecia nelle uma casaca de cerimonia. Era | |
| magro, chupado, com um principio de calva; teria os seus cincoenta e | |
| cinco annos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquelle | |
| vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um | |
| syllogismo completo, a premissa antes da consequencia, a consequencia | |
| antes da conclusão. Um dever amarissimo! | |
| V | |
| O aggregado. | |
| Nem sempre ia naquelle passo vagaroso e rigido. Tambem se descompunha | |
| em accionados, era muita vez rapido e lepido nos movimentos, tão | |
| natural nesta como naquella maneira. Outrosim, ria largo, se era | |
| preciso, de um grande riso sem vontade, mas communicativo, a tal ponto | |
| as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, todo a pessoa, todo o | |
| mundo pareciam rir nelle. Nos lances graves, gravissimo. | |
| Era nosso aggregado desde muitos annos; meu pae ainda estava na | |
| antiga fazenda de Itaguahy, e eu acabava de nascer. Um dia appareceu | |
| alli vendendo-se por medico homeopatha; levava um _Manual_ e uma | |
| botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor | |
| e uma escrava, e não quiz receber nenhuma remuneração. Então meu | |
| pae propoz-lhe ficar alli vivendo, com pequeno ordenado. José Dias | |
| recusou, dizendo que era justo levar a saude á casa de sapé do pobre. | |
| --Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quizer, mas fique | |
| morando comnosco. | |
| --Voltarei daqui a tres mezes. | |
| Voltou dalli a duas semanas, acceitou casa e comida sem outro | |
| estipendio, salvo o que quizessem dar por festas. Quando meu pae foi | |
| eleito deputado e veiu para o Rio de Janeiro com a familia, elle veiu | |
| tambem, e teve o seu quarto ao fundo da chacara. Um dia, reinando | |
| outra vez febres em Itaguahy, disse-lhe meu pae que fosse ver a nossa | |
| escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou | |
| confessando que não era medico. Tomára este titulo para ajudar a | |
| propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a | |
| consciencia não lhe permittia acceitar mais doentes. | |
| --Mas, você curou das outras vezes. | |
| --Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remedios | |
| indicados nos livros. Elles, sim, elles, abaixo de Deus. Eu era um | |
| charlatão... Não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e | |
| eram dignos; a homeopathia é a verdade, e, para servir á verdade, | |
| menti; mas é tempo de restabelecer tudo. | |
| Não foi despedido, como pedia então; meu pae já não podia dispensal-o. | |
| Tinha o dom de se fazer acceito e necessario; dava-se por falta delle, | |
| como de pessoa de familia. Quando meu pae morreu, a dôr que o pungiu | |
| foi enorme, disseram-me, não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito | |
| grata, e não consentiu que elle deixasse o quarto da chacara; ao setimo | |
| dia, depois da missa, elle foi despedir-se della. | |
| --Fique, José Dias. | |
| --Obedeço, minha senhora. | |
| Teve um pequeno legado no testamento, uma apolice e quatro palavras de | |
| louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, | |
| por cima da cama. «Esta é a melhor apolice», dizia elle muita vez. Com | |
| o tempo, adquiriu certa autoridade na familia, certa audiencia, ao | |
| menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não | |
| direi optimo, mas nem tudo é optimo neste mundo. E não lhe supponhas | |
| alma subalterna; as cortezias que fizesse vinham antes do calculo | |
| que da indole. A roupa durava-lhe muito; ao contrario das pessoas | |
| que enxovalham depressa o vestido novo, elle trazia o velho escovado | |
| e liso, cirzido, abotoado, de uma elegancia pobre e modesta. Era | |
| lido, posto que de atropello, o bastante para divertir ao serão e á | |
| sobremesa, ou explicar algum phenomeno, falar dos effeitos do calor e | |
| do frio, dos polos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que | |
| fizera á Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado | |
| para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa familia, dizia elle, | |
| abaixo de Deus, era tudo. | |
| --Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia. | |
| --Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração. | |
| E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que elle punha Deus no | |
| devido logar, e sorriu approvando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha | |
| mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era | |
| advogado, confiava-lhe a copia de papeis de autos. | |
| VI | |
| Tio Cosme. | |
| Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ella enviuvou. Já então era | |
| viuvo, como prima Justina; era a casa dos tres viuvos. | |
| A fortuna troca muita vez as mãos á natureza. Formado para as serenas | |
| funccões do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no fòro: ia comendo. | |
| Tinha o escriptorio na antiga rua das Violas, perto do jury, que era no | |
| extincto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas | |
| oraes de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos | |
| comprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais | |
| modesto que quizesse ser, sorria de persuasão. | |
| Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. | |
| Uma das minhas recordações mais antigas era vel-o montar todas as | |
| manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escriptorio. | |
| O preto que a tinha ido buscar á cocheira, segurava o freio, emquanto | |
| elle erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de | |
| descanço ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo | |
| ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, egual effeito. Emfim, | |
| após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças | |
| physicas e moraes, dava o ultimo surto da terra, e desta vez caía em | |
| cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que | |
| acabava de receber o mundo. Tio Cosme accommodava as carnes, e a besta | |
| partia a trote. | |
| Tambem não me esqueceu o que elle me fez uma tarde. Posto que nascido | |
| na roça (donde vim com dous annos) e apezar dos costumes do tempo, | |
| eu não sabia montar, e tinha medo ao cavallo. Tio Cosme pegou em mim | |
| e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove | |
| annos), sósinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar | |
| desesperadamente: «Mamãe! mamãe!» Ella acudiu pallida e tremula, cuidou | |
| que me estivessem matando, apeou-me, affagou-me, emquanto o irmão | |
| perguntava: | |
| --Mana Gloria, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa? | |
| --Não está acostumado. | |
| --Deve acostumar-se. Padre que seja, se fôr vigario na roça, é preciso | |
| que monte a cavallo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quizer | |
| florear como os outros rapazes, e não souber, ha de queixar-se de você, | |
| mana Gloria. | |
| --Pois que se queixe; tenho medo. | |
| --Medo! Ora, medo! | |
| A verdade é que eu só vim a apprender equitação mais tarde, menos por | |
| gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. «Agora é que | |
| elle vae namorar devéras», disseram quando eu comecei as licções. Não | |
| se diria o mesmo de tio Cosme. Nelle era velho costume e necessidade. | |
| Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi acceito de muitas | |
| damas, além de partidario exaltado; mas os annos levaram-lhe o mais | |
| do ardor politico e sexual, e a gordura acabou com o resto de ideias | |
| publicas e especificas. Agora só cumpria as obrigações do officio e | |
| sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez | |
| dizia pilherias. | |
| VII | |
| D. Gloria. | |
| Minha mãe era boa creatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de | |
| Albuquerque Santiago, contava trinta e um annos de edade, e podia | |
| voltar para Itaguahy. Não quiz; preferiu ficar perto da egreja em que | |
| meu pae fòra sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou | |
| alguns que pôz ao ganho ou alugou, uma duzia de predios, certo numero | |
| de apolices, e deixou-se estar na casa de Matacavallos, onde vivera | |
| os dous ultimos annos de casada. Era filha de uma senhora mineira, | |
| descendente de outra paulista, a familia Fernandes. | |
| Ora, pois, naquelle anno da graça de 1857, D. Maria da Gloria Fernandes | |
| Santiago contava quarenta e dous annos de edade. Era ainda bonita e | |
| moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a | |
| natureza quizesse preserval-a da acção do tempo. Vivia mettida em um | |
| eterno vestido escuro, sem adornos, com um chale preto, dobrado em | |
| triangulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabellos, em bandós, | |
| eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez | |
| trazia touca branca de fólhos. Lidava assim, com os seus sapatos de | |
| cordavão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços | |
| todos da casa inteira, desde manhã até á noite. | |
| Tenho alli na parede o retrato della, ao lado do do marido, taes | |
| quaes na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá ideia de | |
| ambos. Não me lembra nada delle, a não ser vagamente que era alto e | |
| usava cabelleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me | |
| acompanham para todos os lados, effeito da pintura que me assombrava em | |
| pequeno. O pescoço sae de uma gravata preta de muitas voltas, a cara | |
| é toda rapada, salvo um trechosinho pegado ás orelhas. O de minha mãe | |
| mostra que era linda. Contava então vinte annos, e tinha uma flôr entre | |
| os dedos. No painel parece offerecer a flôr ao marido. O que se lè na | |
| cara do ambos é que, se a felicidade conjugal póde ser comparada á | |
| sorte grande, elles a tiraram no bilhete comprado de sociedade. | |
| Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as accusou | |
| ainda de immoraes, como ninguem tachou de má a boceta de Pandora, por | |
| lhe ter tirado a esperança no fundo; em alguma parte ha de ella ficar. | |
| Aqui os tenho aos dous bem casados de outr'ora, os bem-amados, os | |
| bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um | |
| sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os | |
| olhos para elles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatidica. | |
| São retratos que valem por originaes. O de minha mãe, estendendo a flôr | |
| ao marido, parece dizer: «Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!» O de meu | |
| pae, olhando para a gente, faz este commentario: «Vejam como esta moça | |
| me quer...» Se padeceram molestias, não sei, como não sei se tiveram | |
| desgostos: era creança e comecei por não ser nascido. Depois da morte | |
| delle, lembra-me que ella chorou muito; mas aqui estão os retratos de | |
| ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. | |
| São como photographias instantaneas da felicidade. | |
| VIII | |
| É tempo! | |
| Mas é tempo de tomar áquella tarde de Novembro, uma tarde clara e | |
| fresca, socegada como a nossa casa e o trecho da rua em que moravamos. | |
| Verdadeiramente foi o principio da minha vida; tudo o que succedera | |
| antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em | |
| scena, o accender das luzes, o preparo das rabecas, a symphonia... | |
| Agora é que eu ia começar a minha opera. «A vida é uma opera,» dizia-me | |
| um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia | |
| a definição, em tal maneira que me fez crer nella. Talvez valha a pena | |
| dal-a; é só um capitulo. | |
| IX | |
| A opera. | |
| Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. «O desuso é que | |
| me faz mal», accrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da | |
| Europa, ia ao empresario e expunha-lhe todas as injustiças da terra e | |
| do ceu; o empresario commettia mais uma, e elle saía a bradar contra | |
| a iniquidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papeis. Quando andava, | |
| apezar de velho, parecia cortejar uma princeza de Babylonia. Ás vezes, | |
| cantarolava, sem abrir a bocca, algum trecho ainda mais edoso que elle | |
| ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possiveis. Vinha aqui jantar | |
| commigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me | |
| a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia | |
| sor uma opera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e | |
| replicou: | |
| --A vida é uma opera e uma grande opera. O tenor e o barytono lutam | |
| pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimarios, quando não são o | |
| soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo | |
| e dos mesmos comprimarios. Ha córos numerosos, muitos bailados, e a | |
| orchestração é excellente... | |
| --Mas, meu caro Marcolini... | |
| --Quê...? | |
| E, depois de beber um gole de licor, pousou o calix, e expoz-me a | |
| historia da creação, com palavras que vou resumir. | |
| Deus é o poeta. A musica é de Satanaz, joven maestro de muito futuro, | |
| que apprendeu no conservatorio do ceu. Rival de Miguel, Raphael e | |
| Gabriel, não tolerava a precedencia que elles tinham na distribuição | |
| dos premios. Póde ser tambem que a musica em demasia doce e mystica | |
| daquelles outros condiscipulos fosse aborrecivel ao seu genio | |
| essencialmente tragico. Tramou uma rebellião que foi descoberta a | |
| tempo, e elle expulso do conservatorio. Tudo se teria passado sem mais | |
| nada, se Deus não houvesse escripto um libretto de opera, do qual | |
| abrira mão, por entender que tal genero de recreio era improprio da | |
| sua eternidade. Satanaz levou o manuscripto comsigo para o inferno. | |
| Com o fim de mostrar que valia mais que os outros,--e acaso para | |
| reconciliar-se com o ceu--compoz a partitura, e logo que a acabou foi | |
| leval-a ao Padre Eterno. | |
| --Senhor, não desapprendi as licções recebidas, disse-lhe. Aqui tendes | |
| a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes | |
| digna das alturas, admitti-me com ella a vossos pés... | |
| --Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada. | |
| --Mas, Senhor... | |
| --Nada! nada! | |
| Satanaz supplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cançado e | |
| cheio de misericordia, consentiu em que a opera fosse executada, mas | |
| fóra do ceu. Creou um theatro especial, este planeta, e inventou uma | |
| companhia inteira, com todas as partes, primarias e comprimarias, córos | |
| e bailarinos. | |
| --Ouvi agora alguns ensaios! | |
| --Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libretto; | |
| estou prompto a dividir comtigo os direitos de autor. | |
| Foi talvez um mal esta recusa; della resultaram alguns desconcertos | |
| que a audiencia prévia e a collaboração amiga teriam evitado. Com | |
| effeito, ha logares em que o verso vae para a direita e a musica para | |
| a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a belleza da | |
| composição, fugindo á monotonia, e assim explicam o tercetto do Eden, | |
| a aria de Abel, os córos da guilhotina e da escravidão. Não é raro que | |
| os mesmos lances se reproduzam, sem razao sufficiente. Certos motivos | |
| cançam á força de repetição. Tambem ha obscuridades; o maestro abusa | |
| das massas choraes, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. | |
| As partes orchestraes são aliás tratadas com grande pericia. Tal é a | |
| opinião dos imparciaes. | |
| Os amigos do maestro querem que difficilmente se possa achar obra | |
| tão bem acabada. Um ou outro admitte certas rudezas e taes ou | |
| quaes lacunas, mas com o andar da opera é provavel que estas sejam | |
| preenchidas ou explicadas, e aquellas desapparecam inteiramente, não se | |
| negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo | |
| ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. | |
| Juram que o libretto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o | |
| sentido da lettra, e, posto seja bonita em alguns logares, e trabalhada | |
| com arte em outros, é absolutamente diversa e até contraria ao drama. O | |
| grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescencia | |
| para imitar as _Mulheres patuscas de Windsor._ Este ponto é contestado | |
| pelos satanistas com alguma apparencia de razão. Dizem elles que, ao | |
| tempo em que o joven Satanaz compoz a grande opera, nem essa farça nem | |
| Shakespeare eram nascidos. Chegam a affirmar que o poeta inglez não | |
| teve outro genio senão transcrever a lettra da opera, com tal arte | |
| e fidelidade, que parece elle proprio o autor da composição; mas, | |
| evidentemente, é um plagiario. | |
| --Esta peça, concluiu o velho tenor, durará emquanto durar o theatro, | |
| não se podendo calcular em que tempo será elle demolido por utilidade | |
| astronomica. O exito é crescente. Poeta e musico recebem pontualmente | |
| os seus direitos autoraes, que não são os mesmos, porque a regra da | |
| divisão é aquillo da Escriptura: «Muitos são os chamados, poucos os | |
| escolhidos.» Deus recebe em ouro, Satanaz em papel. | |
| --Tem graça... | |
| --Graça? bradou elle com furia; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro | |
| Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror á graça. Isto que digo é | |
| a verdade pura e ultima. Um dia, quando todos os livros forem queimados | |
| por inuteis, ha de haver alguem, póde ser que tenor, e talvez italiano, | |
| que ensine esta verdade aos homens. Tudo é musica, meu amigo. No | |
| principio era o _dó_, e o _dó_ fez-se _ré_, etc. Este calix (e enchia-o | |
| novamente) este calix é um breve estribilho. Não se ouve? Tambem não se | |
| ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma opera... | |
| X | |
| Acceito a theoria. | |
| Que é demasiada metaphysica para um só tenor, não ha duvida; mas a | |
| perda da voz explica tudo, e ha philosophos que são, em resumo, tenores | |
| desempregados. | |
| Eu, leitor amigo, acceito a theoria do meu velho Marcolini, não só pela | |
| verosimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida | |
| se casa bem á definição. Cantei um _duo_ ternissimo, depois um _trio_, | |
| depois um _quatuor..._ Mas não adeantemos; vamos á primeira tarde, em | |
| que eu vim a saber que já cantava, porque a denuncia de José Dias, | |
| meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que elle me | |
| denunciou. | |
| XI | |
| A promessa. | |
| Tão depressa vi desapparecer o aggregado no corredor, deixei o | |
| esconderijo, e corri á varanda do fundo. Não quiz saber de lagrimas nem | |
| da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os | |
| seus projectos ecclesiasticos, e a occasião destes é a que vou dizer, | |
| por ser já então historia velha; datava de dezeseis annos. | |
| Os projectos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido | |
| morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo | |
| vingasse, promettendo, se fosse varão, mettel-o na egreja. Talvez | |
| esperasse uma menina. Não disse nada a meu pae, nem antes, nem depois | |
| de me dar á luz; contava fazel-o quando eu entrasse para a escola, | |
| mas enviuvou antes disso. Viuva, sentiu terror de separar-se de mim; | |
| mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da | |
| obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, | |
| para que nos separassemos o mais tarde possivel, fez-me apprender em | |
| casa primeiras lettras, latim e doutrina, por aquelle padre Cabral, | |
| velho amigo do tio Cosme, que ia lá jogar ás noites. | |
| Prazos largos são faceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. | |
| Minha mãe esperou que os annos viessem vindo. Entretanto, ia-me | |
| affeiçoando á ideia da egreja; brincos de creança, livros devotos, | |
| imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar. | |
| Quando iamos á missa, dizia-me sempre que era para apprender a ser | |
| padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em | |
| casa, brincava de missa,--um tanto ás escondidas, porque minha mãe | |
| dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjavamos um altar, | |
| Capitú e eu. Ella servia de sacristão, e alteravamos o ritual, no | |
| sentido do dividirmos a hostia entre nós; a hostia era sempre um | |
| doce. No tempo em que brincavamos assim, era muito commum ouvir á | |
| minha visinha: «Hoje ha missa?» Eu já sabia o que isto queria dizer, | |
| respondia affirmativamente, e ia pedir hostia por outro nome. Voltava | |
| com ella, arranjavamos o altar, engrolavamos o latim e precipitavamos | |
| as cerimonias. _Dominus, non sum dignus..._ Isto, que eu devia dizer | |
| tres vezes, penso que só dizia uma, tal era a golodice do padre e do | |
| sacristão. Não bebiamos vinho nem agua; não tinhamos o primeiro, e a | |
| segunda viria tirar-nos o gosto do sacrificio. | |
| Ultimamente não me falavam já do seminario, a tal ponto que eu suppunha | |
| ser negocio findo. Quinze annos, não havendo vocação, pediam antes o | |
| seminario do mundo que o de S. José. Minha mãe ficava muita vez a olhar | |
| para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, | |
| para apertal-a muito. | |
| XII | |
| Na varanda. | |
| Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração | |
| parecendo querer sair-me pela bocca fóra. Não me atrevia a descer á | |
| chacara, e passar ao quintal visinho. Comecei a andar de um lado para | |
| outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes | |
| confusas repetiam o discurso do José Dias: | |
| «Sempre juntos...» | |
| «Em segredinhos...» | |
| «Se elles pegam de namoro...» | |
| Tijolos que pisei e repisei naquella tarde, columnas amarelladas que | |
| me passastes á direita ou á esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós | |
| me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um goso novo, que me | |
| envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e | |
| me derramava não sei que balsamo interior. Ás vezes dava por mim, | |
| sorrindo, um ar do riso de satisfação, que desmentia a abominação do | |
| meu peccado. E as vozes repetiam-se confusas: | |
| «Em segredinhos...» | |
| «Sempre juntos...» | |
| «Se elles pegam de namoro...» | |
| Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de | |
| cima de si que não era feio que os meninos de quinze annos andassem | |
| nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrario, os adolescentes | |
| daquella edade não tinham outro officio, nem os cantos outra utilidade. | |
| Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que | |
| nos velhos livros. Passaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o | |
| estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião. | |
| Com que então eu amava Capitú, e Capitú a mim? Realmente, andava cosido | |
| ás saias della, mas não me occorria nada entre nós que fosse devéras | |
| secreto. Antes della ir para o collegio, eram tudo travessuras de | |
| creanca; depois que saiu do collegio, é certo que não restabelecemos | |
| logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no ultimo | |
| anno era completa. Entretanto, a materia das nossas conversações era | |
| a de sempre. Capitú chamava-me ás vezes bonito, mocetão, uma flòr; | |
| outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar | |
| esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ella | |
| me passava a mão pelos cabellos, dizendo que os achava lindissimos. | |
| Eu, sem fazer o mesmo aos della, dizia que os della eram muito mais | |
| lindos que os meus. Então Capitú abanava a cabeça com uma grande | |
| expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que | |
| tinha os cabellos realmente admiraveis; mas eu retorquia chamando-lhe | |
| maluca. Quando me perguntava se sonhára com ella na vespera, e eu | |
| dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhára commigo, e eram aventuras | |
| extraordinarias, que subiamos ao Corcovado pelo ar, que dansavamos na | |
| lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, afim de | |
| os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos | |
| andavamos unidinhos. Os que eu tinha com ella não eram assim, apenas | |
| reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da simples | |
| repetição do dia, alguma phrase, algum gesto. Tambem eu os contava. | |
| Capitú um dia notou a differença, dizendo que os della eram mais | |
| bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram | |
| como a pessoa que sonhava... Fez-se còr de pitanga. | |
| Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam essas e | |
| outras confidencias. A emoção era doce e nova, mas a causa della | |
| fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silencios dos | |
| ultimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como signaes | |
| de alguma cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as | |
| respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infancia. Tambem | |
| adverti que era phenomeno recente accordar com o pensamento em Capitú, | |
| e escutal-a de memoria, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se | |
| se falava nella, em minha casa, prestava mais altenção que d'antes, | |
| e, segundo era louvor ou critica, assim me trazia gosto ou desgosto | |
| mais intensos que outr'ora, quando eramos sómente companheiros de | |
| travessuras. Cheguei a pensar nella durante as missas daquelle mez, com | |
| intervallos, é verdade, mas com exclusivismo tambem. | |
| Tudo isto me era agora apresentado pela bocca de José Dias, que me | |
| denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, | |
| o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e do outro. Naquelle | |
| instante, a eterna Verdade não valeria mais que elle, nem a eterna | |
| Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Em amava Capitú! Capitú | |
| amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, tremulas | |
| e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa | |
| revelação da consciencia a si propria, nunca mais me esqueceu, nem | |
| achei que lhe fosse comparavel qualquer outra sensação da mesma | |
| especie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente tambem por ser a | |
| primeira. | |
| XIII | |
| Capitú. | |
| De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé: | |
| --Capitú! | |
| E no quintal: | |
| --Mamãe! | |
| E outra vez na casa: | |
| --Vem cá! | |
| Não me pude ter. As pernas desceram-me os tres degraus que davam para | |
| a chacara, e caminharam para o quintal visinho. Era costume dellas, ás | |
| tardes, e ás manhãs tambem. Que as pernas tambem são pessoas, apenas | |
| interiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça não as | |
| rege por meio de ideias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia alli | |
| uma porta de communicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitú | |
| e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela, abria-se | |
| empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de | |
| uma pedra pendente de uma corda. Era quasi que exclusivamente nossa. | |
| Em creancas, faziamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos | |
| do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitú adoeciam, | |
| o medico era eu. Entrava no quintal della com um pau debaixo do | |
| braço, para imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso | |
| á doente, e pedia-lhe que mostrasse a lingua. «É surda, coitada!» | |
| exclamava Capitú. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava | |
| mandando applicar-lhe umas sanguesugas ou dar-lhe um vomitorio: era a | |
| therapeutica habitual do medico. | |
| --Capitú! | |
| --Mamãe! | |
| --Deixa de estar esburacando o muro; vem cá. | |
| A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos | |
| fundos. Quiz passar ao quintal, mas as pernas, ha pouco tão andarilhas, | |
| pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, | |
| e entrei. Capitú estava ao pé do muro fronteiro, voltada para elle, | |
| riscando com um prego. O rumor da porta fel-a olhar para traz; ao dar | |
| commigo, encostou-se ao muro, como se quizesse esconder alguma cousa. | |
| Caminhei para ella; naturalmente levava o gesto mudado, porque ella | |
| veiu a mim, e perguntou-me inquieta: | |
| --Que é que você tem? | |
| --Eu? Nada. | |
| --Nada, não; você tem alguma cousa. | |
| Quiz insistir que nada, mas não achei lingua. Todo eu era olhos e | |
| coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela bocca | |
| fora. Não podia tirar os olhos daquella creatura de quatorze annos, | |
| alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. | |
| Os cabellos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma á | |
| outra, á moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros | |
| e grandes, nariz recto e comprido, tinha a bocca fina e o queixo largo. | |
| As mãos, a despeito de alguns officios rudes, eram curadas com amor; | |
| não cheiravam a sabões finos nem aguas de toucador, mas com agua do | |
| poço e sabão commum trazia-as sem macula. Calçava sapatos de duraque, | |
| rasos e velhos, a que ella mesma dera alguns pontos. | |
| --Que é que você tem? repetiu. | |
| --Não é nada, balbuciei finalmente. | |
| E emendei logo: | |
| --É uma noticia. | |
| --Noticia de què? | |
| Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminario e espreitar a | |
| impressão que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de | |
| mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse calculo foi obscuro e | |
| rapido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista não | |
| sei como... | |
| --Então? | |
| --Você sabe... | |
| Nisto olhei para o muro, o logar em que ella estivera riscando, | |
| escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e | |
| lembrou-me o gesto que ella fizera para cobril-os. Então quiz vel-os | |
| de perto, e dei um passo. Capitú agarrou-me, mas, ou por temer que | |
| eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adeante e | |
| apagou o escripto. Foi o mesmo que accender em mim o desejo de ler o | |
| que era. | |
| XIV | |
| A inscripção. | |
| Tudo o que contei no fim do outro capitulo foi obra de um instante. | |
| O que se lhe seguiu foi ainda mais rapido. Dei um pulo, e antes que | |
| ella raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, o assim | |
| dispostos: | |
| BENTO CAPITOLINA | |
| Voltei-me para ella; Capitú tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, | |
| devagar, e ficámos a olhar um para o outro... Confissão de creanças, | |
| tu valias bem duas ou tres paginas, mas quero ser poupado. Em verdade, | |
| não falámos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que | |
| se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, | |
| fundindo-se. Não marquei a hora exacta daquelle gesto. Devia tel-a | |
| marcado; sinto a falta de uma nota escripta naquella mesma noite, e | |
| que eu poria aqui com os erros de orthographia que trouxesse, mas não | |
| traria nenhum, tal era a differença entre o estudante e o adolescente. | |
| Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias | |
| de latim e era virgem de mulheres. | |
| Não soltámos as mãos, nem ellas se deixaram cair de cançadas ou de | |
| esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao | |
| perto, tornavam a metter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava | |
| assim deante della como de um altar, sendo uma das faces a Epistola e | |
| a outra o Evangelho. A bocca podia ser o calix, os labios a patena. | |
| Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguem apprende, e é a | |
| lingua catholica dos homens. Não me tenhas por sacrilego, leitora minha | |
| devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no | |
| estylo. Estavamos alli com o ceu em nós. As mãos, unindo os nervos, | |
| faziam das duas creaturas uma só, mas uma só creatura seraphica. Os | |
| olhos continuaram a dizer cousas infinitas, as palavras de bocca é que | |
| nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham... | |
| XV | |
| Outra voz repentina. | |
| Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem: | |
| --Vocês estão jogando o siso? | |
| Era o pae de Capitú, que estava á porta dos fundos, ao pé da mulher. | |
| Soltámos as mãos depressa, e ficámos atrapalhados. Capitú foi ao muro, | |
| e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes escriptos. | |
| --Capitú! | |
| --Papae! | |
| --Não me estragues o reboco do muro. | |
| Capitú riscava sobre o riscado, para apagar bem o escripto. Padua saiu | |
| ao quintal, a ver o que era, mas já a filha tinha começado outra cousa, | |
| um perfil, que disse ser o retrato delle, e tanto podia ser delle como | |
| da mãe; fel-o rir, era o essencial. De resto, elle chegou sem colera, | |
| todo meigo, apezar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que nos | |
| apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas | |
| abahuladas, donde lhe veiu a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe | |
| poz. Ninguem lhe chamava assim lá em casa; era só o aggregado. | |
| --Vocês estavam jogando o siso? perguntou, | |
| Olhei para um pé do sabugueiro que ficava perto; Capitú respondeu por | |
| ambos. | |
| --Estavamos, sim, senhor, mas Bentinho ri logo, não aguenta. | |
| --Quando eu cheguei á porta, não ria. | |
| --Já tinha rido das outras vezes; não póde. Papae quer ver? | |
| E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é | |
| naturalmente serio; eu estava ainda sob a acção do que trouxe a entrada | |
| de Padua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazel-o, para | |
| legitimar a resposta de Capitú. Esta, cançada de esperar, desviou | |
| o rosto, dizendo que eu não ria daquella vez por estar ao pé do | |
| pae. E nem assim ri. Ha cousas que só se apprendem tarde; é mister | |
| nascer com ellas para fazel-as cedo. E melhor é naturalmente cedo que | |
| artificialmente tarde. Capitú, após duas voltas, foi ter com a mãe, | |
| que continuava á porta da casa, deixando-nos a mim e ao pae encantados | |
| della; o pae, olhando para ella e para mim, dizia-me, cheio de ternura: | |
| --Quem dirá que esta pequena tem quatorze annos? Parece dezesete. Mamãe | |
| está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim. | |
| --Está. | |
| --Ha muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote | |
| ao doutor, mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição, em | |
| casa; escrevo todos os noites que é em desespero; negocio de relatorio. | |
| Você já viu o meu gaturamo? Está alli no fundo. Ia agora mesmo buscar a | |
| gaiola; ande ver. | |
| Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar | |
| pelo ceu nem pela terra. Meu desejo era ir atraz de Capitú e falar-lhe | |
| agora do mal que nos esperava, mas o pae era o pae, e demais amava | |
| particularmente os passarinhos. Tinha-os de varia especie, côr e | |
| tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de | |
| canarios, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava | |
| passaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no proprio | |
| quintal, armando alçapões. Tambem, se adoeciam, tratava delles como se | |
| fossem gente. | |
| XVI | |
| O administrador interino. | |
| Padua era empregado em repartição dependente do ministerio da guerra. | |
| Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. | |
| Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que | |
| menor, era propriedade delle. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu | |
| n'um meio bilhete de loteria, dez contos de reis. A primeira ideia do | |
| Padua, quando lhe saiu o premio, foi comprar um cavallo do Cabo, um | |
| adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpetua de familia, | |
| mandar vir da Europa alguns passaros, etc.; mas a mulher, esta D. | |
| Fortunata que alli está á porta dos fundos da casa, em pé, falando á | |
| filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos | |
| olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, | |
| e guardar o que sobrasse para acudir ás molestias grandes. Padua | |
| hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem | |
| D. Fortunata pediu auxilio. Nem foi só nessa occasião que minha mãe | |
| lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Padua. Escutai; a anecdota | |
| é curta. | |
| O administrador da repartição em que Padua trabalhava teve de ir ao | |
| Norte, em commissão. Padua, ou por ordem regulamentar, ou por especial | |
| designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos | |
| honorarios. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem: era | |
| antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa, | |
| atirou-se ás despezas superfluas, deu joias á mulher, nos dias de | |
| festa matava um leitão, era visto em theatros, chegou aos sapatos de | |
| verniz. Viveu assim vinte e dous mezes na supposição de uma eterna | |
| interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, afflicto e desvairado, | |
| ia perder o logar, porque chegara o effectivo naquella manhã. Pediu a | |
| minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia soffrer | |
| a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas elle não | |
| attendia a cousa nenhuma. | |
| --Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer | |
| a familia, tornar atraz... Já disse, mato-me! Não hei de confessar á | |
| minha gente esta miseria. E os outros? Que dirão os visinhos? E os | |
| amigos? E o publico? | |
| --Que publico, Sr. Padua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua | |
| mulher não tem outra pessoa... e que ha de fazer? Pois um homem... | |
| Seja homem, ande. | |
| Padua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns | |
| dias, mudo, fechado na alcova,--ou então no quintal, ao pé do poço, | |
| como se a ideia da morte teimasse nelle. D. Fortunata ralhava: | |
| --Joãosinho, você é creança? | |
| Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu | |
| a pedir a minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o | |
| marido que se queria matar. Minha mãe foi achal-o á beira do poço, e | |
| intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquella de parecer que ia | |
| ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um | |
| emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pae de familia, imitar | |
| a mulher e a filha... Padua obedeceu; confessou que acharia forças para | |
| cumprir a vontade de minha mãe. | |
| --Vontade minha, não; é obrigação sua. | |
| --Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo. | |
| Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido á parede, | |
| cara no chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéo em cortejar | |
| a visinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração | |
| interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. Padua começou a | |
| interessar-se pelos negocios domesticos, a cuidar dos passarinhos, a | |
| dormir tranquillo as noites e as tardes, a conversar e dar noticias da | |
| rua. A serenidade regressou; atraz della veiu a alegria, um domingo, | |
| na figura de dous amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já elle ria, | |
| já brincava, tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo. | |
| Com o tempo veiu um phenomeno interessante. Padua começou a falar da | |
| administração interina, não sómente sem as saudades dos honorarios, | |
| nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A | |
| administração ficou sendo a hegyra, donde elle contava para deante e | |
| para traz. | |
| --No tempo em que eu era administrador... | |
| Ou então: | |
| --Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dous | |
| mezes antes... Ora espere; a minha administração começou... É isto, mez | |
| e meio antes; foi mez e meio antes, não foi mais. | |
| Ou ainda: | |
| --Justamente; havia já seis mezes que eu administrava... | |
| Tal é o sabor posthumo das glorias interinas. José Dias bradava que | |
| era a vaidade sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a | |
| Escriptura, dizia que com o visinho Padua se dava a licção de Eliphaz a | |
| Job: «Não desprezes a correcção do Senhor; elle fere e cura.» | |
| XVII | |
| Os vermes. | |
| «Elle fere e cura!» Quando, mais tarde, vim a saber que a lança | |
| de Achilles tambem curou uma ferida que fez, tive taes ou quaes | |
| velleidades de escrever uma dissertação a este proposito. Cheguei a | |
| pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abril-os, a | |
| comparal-os, calando o texto e o sentido, para achar a origem commum do | |
| oraculo pagão e do pensamento israelita. Catei os proprios vermes dos | |
| livros, para que me dissessem o que havia nos textos roidos por elles. | |
| --Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, uns não sabemos | |
| absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, | |
| nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos. | |
| Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem | |
| passado palavra, repeliam a mesma cantilena. Talvez esse discreto | |
| silencio sobre os textos roidos, fosse ainda um modo de roer o roido. | |
| XVIII | |
| Um plano. | |
| Pae nem mãe foram ter comnosco, quando Capitú e eu, na sala de visitas, | |
| falavamos do seminario. Com os olhos em mim, Capitú queria saber que | |
| noticia era a que me affligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se | |
| côr de cêra. | |
| --Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminarios; não | |
| entro, é excusado teimarem commigo, não entro. | |
| Capitú, a principio não disse nada. Recolheu os olhos, metteu-os | |
| em si e deixou-se estar com as pupillas vagas e surtias, a bocca | |
| entre-aberta, toda parada. Então eu, para dar forca ás affirmações, | |
| comecei a jurar que não seria padre. Naquelle tempo jurava muito e | |
| rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me | |
| faltasse na hora da morte se fosse para o seminario. Capitú não parecia | |
| crer nem descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quiz | |
| chamal-a, sacudil-a, mas faltou-me animo. Essa creatura que brincára | |
| commigo, que pulára, dansára, creio até que dormira commigo, deixava-me | |
| agora com os braços atados e medrosos. Emfim, tornou a si, mas tinha a | |
| cara livida, e rompeu nestas palavras furiosas: | |
| --Beata! carola! papa-missas! | |
| Fiquei aturdido. Capitú gostava tanto de minha mãe, e minha mãe della, | |
| que eu não podia entender tamanha explosão. É verdade que tambem | |
| gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, | |
| cousa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça da | |
| separação; mas os improperios, como entender que lhe chamasse nomes tão | |
| feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os | |
| seus? Que ella tambem ia á missa, e tres ou quatro vezes minha mãe é | |
| que a levou, na nossa velha sege. Tambem lhe dera um rosario, uma cruz | |
| de ouro e um livro de _Horas..._ Quiz defendel-a, mas Capitú não me | |
| deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive | |
| medo fosse ouvida dos paes. Nunca a vi tão irritada como então; parecia | |
| disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabeça... | |
| Eu, assustado, não sabia que fizesse; repetia os juramentos, promettia | |
| ir naquella mesma noite declarar em casa que, por nada neste mundo, | |
| entraria no seminario. | |
| --Você? Você entra. | |
| --Não entro. | |
| --Você verá se entra ou não. | |
| Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não era ainda | |
| a Capitú do costume, mas quasi. Estava seria, sem afflicção, falava | |
| baixo. Quiz saber a conversação da minha casa; eu contei-lh'a toda, | |
| menos a parte que lhe dizia respeito. | |
| --E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim. | |
| --Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, | |
| deixe estar que me ha de pagar. Quando eu fôr dono da casa, quem vae | |
| para a rua é elle, você verá; não me fica um instante. Mamãe é boa de | |
| mais; dá-lhe attenção de mais. Parece até que chorou. | |
| --José Dias? | |
| --Não, mamãe. | |
| --Chorou porque? | |
| --Não sei; ouvi só dizer que ella não chorasse, que não era cousa de | |
| choro... Elle chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então, para | |
| não ser apanhado, deixei o canto e corri para a varanda. Mas, deixe | |
| estar, que elle me paga! | |
| Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembral-as, | |
| não me acho ridiculo; a adolescencia e a infancia não são, neste ponto, | |
| ridiculas; e um dos seus privilegios. Este mal ou este perigo começa | |
| na mocidade, cresce na madurera e attinge o maior grão na velhice. Aos | |
| quinze annos, ha até certa graça em ameaçar muito e não executar nada. | |
| Capitú reflectia. A reflexão não era cousa rara nella, e conheciam-se | |
| as occasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circumstancias | |
| mais, as proprias palavras de uns e de outros, e o tom dellas. Como eu | |
| não queria dizer o ponto inicial da conversa, que era ella mesma, não | |
| lhe pude dar toda a significação. A attenção de Capitú estava agora | |
| particularmente nas lagrimas de minha mãe; não acabava de entendel-as. | |
| Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe | |
| me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ella, temente a Deus, | |
| não podia deixar de cumprir. Fiquei tão satisfeito de ver que assim | |
| espontaneamente reparava as injurias que lhe sairam do peito, pouco | |
| antes, que peguei da mão della e apertei-a muito. Capitú deixou-se ir, | |
| rindo; depois a conversa entrou a cochilar e dormir. Tinhamos chegado | |
| á janella; um preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, | |
| parou em frente e perguntou: | |
| --Sinhásinha, qué cocada hoje? | |
| --Não, respondeu Capitú. | |
| --Cocadinha tá boa. | |
| --Vá-se embora, replicou ella sem rispidez. | |
| --Dê ca! disse eu descendo o braço para receber duas. | |
| Comprei-as, mas tive de as comer sósinho; Capitú recusou. Vi que, em | |
| meio da crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto póde | |
| ser perfeição como imperfeição, mas o momento não é para definições | |
| taes; fiquemos em que a minha amiga, apezar de equilibrada e lucida, | |
| não quiz saber de doce, e gostava muito de doce. Ao contrario, o | |
| pregão que o preto foi cantando, o prégão das velhas tardes, tão sabido | |
| do bairro e da nossa infancia: | |
| Chora, menina, chora, | |
| Chora, porque não tem | |
| Vintem, | |
| a modo que lhe deixára uma impressão aborrecida, Da toada não era; | |
| ella a sabia de cór e de longe, usava repetil-a nos nossos jogos da | |
| puericia, rindo, saltando, trocando os papeis commigo, ora vendendo, | |
| ora comprando um doce ausente. Creio que a lettra, destinada a picar | |
| a vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me | |
| disse: | |
| --Se eu fosse rica, você fugia, mettia-se no paquete e ia para a Europa. | |
| Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que elles não lhe disseram | |
| nada, ou só agradeceram a boa intenção. Com effeito, o sentimento era | |
| tão amigo que eu podia excusar o extraordinario da aventura. | |
| Como vês, Capitú, aos quatorze annos, tinha já ideias atrevidas, | |
| muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas | |
| em si, na pratica faziam-se habeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o | |
| fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. não sei se me explico | |
| bem. Supponde uma concepção grande executada por meios pequenos. | |
| Assim, para não sair do desejo vago e hypothetico de me mandar para | |
| a Europa, Capitú, se pudesse cumpril-o, não me faria embarcar no | |
| paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por | |
| onde eu, parecendo ir á fortaleza da Lage em ponte movediça, iria | |
| realmente até Bordéos, deixando minha mãe na praia, á espera. Tal era | |
| a feição particular do caracter da minha amiga; pelo que, não admira | |
| que, combatendo os meus projectos de resistencia franca, fosse antes | |
| pelos meios brandos, pela acção do empenho, da palavra, da persuasão | |
| lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podiamos | |
| contar. Rejeitou tio Cosme; era um «boa-vida»; se não approvava a | |
| minha ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendel-a. Prima | |
| Justina era melhor que elle, e melhor que os dous seria o padre Cabral, | |
| pela autoridade, mas o padre não havia de trabalhar contra a egreja; só | |
| se eu lhe confessasse que não tinha vocação.... | |
| --Posso confessar? | |
| --Pois, sim, mas seria apparecer francamente, e o melhor é outra cousa. | |
| José Dias.... | |
| --Que tem José Dias? | |
| --Póde ser um bom empenho. | |
| --Mas se foi elle mesmo que falou.... | |
| --Não importa, continuou Capitú; dirá agora outra cousa. Elle gosta | |
| muito de você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, | |
| mostre que ha de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que póde. | |
| Dê-lhe bem a entender que não é favor. Faça-lhe tambem elogios; elle | |
| gosta muito de ser elogiado. D. Gloria presta-lhe attenção; mas o | |
| principal não é isso; é que elle, tendo de servir a você, falará com | |
| muito mais calor que outra pessoa. | |
| --Não acho. não, Capitú. | |
| --Então vá para o seminario. | |
| --Isso não. | |
| --Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faça o que lhe | |
| digo. D. Gloria póde ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se | |
| outra cousa, mette-se então o padre Cabral. Você não se lembra como | |
| é que foi ao theatro pela primeira vez, ha dous mezes? D. Gloria não | |
| queria, e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas elle queria | |
| ir, e fez um discurso, lembra-se? | |
| --Lembra-me; disse que o theatro era uma escola de costumes. | |
| --Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada | |
| aos dous.... Ande, peça, mande. Olhe; diga-lhe que está prompto a ir | |
| estudar leis em S. Paulo. | |
| Estremeci de prazer. S. Paulo era um fragil biombo, destinado a ser | |
| arredado um dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometti | |
| falar a José Dias nos termos propostos. Capitú repetiu-os, accentuando | |
| alguns, como principaes; e inquiria-me depois sobre elles, a ver se | |
| entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em que pedisse | |
| com boa cara, mas assim como quem pede um copo de agua a pessoa que | |
| tem obrigação de o trazer. Conto estas minucias para que melhor se | |
| entenda aquella manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã | |
| e da tarde se fará o primeiro dia, como no Genesis, onde se fizeram | |
| successivamente sete. | |
| XIX | |
| Sem falta. | |
| Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não | |
| pensasse nos termos em que falaria ao aggregado. Formulei o pedido de | |
| cabeça, escolhendo as palavras que diria e o tom dellas, entre secco | |
| e benevolo. Na chacara, antes de entrar em casa, repeti-as commigo, | |
| depois em voz alia, para ver se eram adequadas e se obedeciam ás | |
| recommendações de Capitú: «Preciso falar-lhe, _sem falta_, amanhã; | |
| escolha o logar e diga-me.» Proferi-as lentamente, e mais lentamente | |
| ainda as palavras _sem falta_, como para sublinhal-as. Repeti-as ainda, | |
| e então achei-as seccas de mais, quasi rispidas, e, francamente, | |
| improprias de um creançola para um homem maduro. Cuidei de escolher | |
| outras, e parei. | |
| Afinal disse commigo que as palavras podiam servir, tudo era dizel-as | |
| em tom que não offendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, | |
| saíram-me quasi supplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar | |
| muito, um meio termo. «E Capitú tem razão, pensei, a casa é minha, elle | |
| é um simples aggregado... Geitoso é, póde muito bem trabalhar por mim, | |
| e desfazer o plano de mamãe.» | |
| XX | |
| Mil padre-nossos e mil ave-marias. | |
| Levantei os olhos ao ceu, que começava a embruscar-se, mas não foi para | |
| vel-o coberto ou descoberto. Era ao outro ceu que eu erguia a minha | |
| alma; era ao meu refugio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim: | |
| --Prometto rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias | |
| arranjar que eu não vá para o seminario. | |
| A somma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas | |
| não cumpridas. A ultima foi de duzentos padre-nossos e duzentas | |
| ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Theresa. | |
| Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me | |
| a pedir ao ceu os seus favores, mediante orações que diria, se elles | |
| viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e á medida que | |
| se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos numeros vinte, | |
| trinta, cincoenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo | |
| de peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada | |
| promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a divida antiga. | |
| Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a | |
| sentia attenuada pela vida! O ceu fazia-me o favor, eu adiava a paga. | |
| Afinal perdi-me nas contas. | |
| --Mil, mil, repeti commigo. | |
| Realmente, a materia do beneficio era agora immensa, não menos que a | |
| salvação ou o naufragio da minha existencia inteira. Mil, mil, mil. | |
| Era preciso uma somma que pagasse os atrazados todos. Deus podia | |
| muito bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem | |
| muito dinheiro.... Homem grave, é possivel que estas agitações de | |
| menino te enfadem, se é que não as achas ridiculas. Sublimes não eram. | |
| Cogitei muito no modo de resgatar a divida espiritual. Não achava | |
| outra especie em que, mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando | |
| a escripturação da minha consciencia moral sem _deficit._ Mandar | |
| dizer cem missas, ou subir do joelhos a ladeira da Gloria para ouvir | |
| uma, ir á Terra-Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de | |
| promessas celebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espirito. | |
| Era muito duro subir uma ladeira de joelhos; devia feril-os por força. | |
| A Terra-Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam | |
| empenhar-mo outra vez a alma.... | |
| XXI | |
| Prima Justina. | |
| Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veiu | |
| ao patamar e perguntou-me onde estivera. | |
| --Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É | |
| tarde, não é? Mamãe perguntou por mim? | |
| --Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo. | |
| A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da noticia. Não é que | |
| prima Justina fosse de biocos; dizia francamente a Pedro o mal que | |
| pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que | |
| mentira é que me pareceu novidade. Era quadragenaria, magra e pallida, | |
| bocca fina e olhos curiosos. Vivia comnosco por favor de minha mãe, e | |
| tambem por interesse; minha mãe queria ter uma senhora intima ao pé de | |
| si, e antes parenta que extranha. | |
| Passeámos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quiz | |
| saber se eu não esquecera os projectos ecclesiasticos de minha mãe, e | |
| dizendo-lhe eu que não, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha á vida | |
| de padre. Respondi esquivo: | |
| --Vida de padre é muito bonita. | |
| --Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, | |
| explicou rindo. | |
| --Eu gósto do que mamãe quizer. | |
| --Prima Gloria deseja muito que você se ordene, mas ainda que não | |
| desejasse, ha cá em casa quem lhe metta isso na cabeça. | |
| --Quem é? | |
| --Ora, quem! Quem é que hade ser? Primo Cosme não é, que não se importa | |
| com isso; eu tambem não. | |
| --José Dias? conclui. | |
| --Naturalmente. | |
| Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada. Prima | |
| Justina completou a noticia dizendo que ainda naquella tarde José Dias | |
| lembrára a minha mãe a promessa antiga. | |
| --Prima Gloria póde ser que, em passando os dias, vá esquecendo a | |
| promessa; mas como ha de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos | |
| ouvidos, zás que darás, falando do seminario? E os discursos que elle | |
| faz, os elogios da egreja, e que a vida de padre é isto e aquillo, tudo | |
| com aquellas palavras que só elle conhece, e aquella affectação... | |
| Note que é só para fazer mal, porque elle é tão religioso, como este | |
| lampião. Pois é verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje | |
| de tarde falou como você não imagina. | |
| --Mas falou á toa? perguntei, a ver se ella contava a denuncia do meu | |
| namoro com a visinha. | |
| Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra cousa | |
| que não podia dizer. Novamente me recommendou que não me désse por | |
| achado, e recapitulou todo o mal que pensava de José Dias, e não era | |
| pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e, apezar da casca | |
| de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse: | |
| --Prima Justina, a senhora era capaz de uma cousa? | |
| --De quê? | |
| --Era capaz de... Supponha que eu não gostasse de ser padre... a | |
| senhora podia pedir a mamãe... | |
| --Isso não, atalhou promptamente; prima Gloria tem este negocio firme | |
| na cabeça, e não ha nada no mundo que a faça mudar de resolução; só | |
| o tempo. Você ainda era pequenino, já ella contava isto a todas as | |
| pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá avivar-lhe a memoria, | |
| não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas tambem, | |
| pedir outra cousa, não peço. Se ella me consultasse, bem; se ella me | |
| dissesse: «Prima Justina, você que acha?» a minha resposta era: «Prima | |
| Gloria, eu penso que, se elle gosta de ser padre, póde ir; mas, se não | |
| gosta, o melhor é ficar.» E o que eu diria e direi se ella me consultar | |
| algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço. | |
| XXII | |
| Sensações alheias. | |
| Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia | |
| ter seguido o conselho de Capitú. Então, como eu quizesse ir para | |
| dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da | |
| proxima festa da Conceição, dos meus velhos oratorios, e finalmente de | |
| Capitú. Não disse mal della; ao contrario insinuou-me que podia vir a | |
| ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindissima, bradaria que era | |
| a mais bella creatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. | |
| Entretanto, como prima Justina se mettesse a elogiar-lhe os modos, a | |
| gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a | |
| minha mãe, tudo isto me accendeu a ponto de elogial-a tambem. Quando | |
| não era com palavras, era com o gesto de approvação que dava a cada | |
| uma das assersões da outra, e certamente com a felicidade que devia | |
| illuminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denuncia de | |
| José Dias, ouvida por ella, á tarde, na sala de visitas, se é que | |
| tambem ella não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti | |
| que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, | |
| ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o officio de todos os sentidos. | |
| Ciumes não podiam ser; entre um pirralho da minha edade e uma viuva | |
| quarentona não havia logar para ciumes. É certo que, após algum | |
| tempo, modificou os elogios a Capitú, e até lhe fez algumas criticas, | |
| disse-me que era um pouco trefega e olhava por baixo; mas ainda assim, | |
| não creio que fossem ciumes. Creio antes... sim... sim, creio isto. | |
| Creio que prima Justina achou no espectaculo das sensações alheias uma | |
| resurreição vaga das proprias. Tambem se goza por influição dos labios | |
| que narram. | |
| XXIII | |
| Prazo dado. | |
| --Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o logar e diga-me. | |
| Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me sairia | |
| tão imperativo como eu receiava, mas as palavras o eram, e o não | |
| interrogar, não pedir, não hesitar, como era proprio da creança e do | |
| meu estylo habitual, certamente lhe deu ideia de uma pessoa nova e de | |
| uma nova situação. Foi no corredor, quando iamos para o chá; José Dias | |
| vinha andando cheio da leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe | |
| e a prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castellos e os parques | |
| saíam maiores da bocca delle, os lagos tinham mais agua e a «abobada | |
| celeste» contava alguns milhares mais de estrellas centelhantes. Nos | |
| dialogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou | |
| finas, conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderação | |
| a ternura e a colera. | |
| Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me elle: | |
| --Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você póde ir commigo, | |
| pedirei a mamãe. É dia de licção? | |
| --A licção foi hoje. | |
| --Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; affirmo desde já que é | |
| materia grave e pura. | |
| --Sim, senhor. | |
| --Até amanhã. | |
| Fez-se tudo o melhor possivel. Houve só uma alteração: minha mãe achou | |
| o dia quente e não consentiu que eu fosse a pé; entrámos no omnibus, á | |
| porta de casa. | |
| --Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos á porta do Passeio | |
| Publico. | |
| XXIV | |
| De mãe e de servo. | |
| José Dias tratava-me com extremos de mãe e attenções de servo. A | |
| primeira cousa que conseguiu logo que comecei a andar fora, foi | |
| dispensar-me o pagem; fez-se pagem, ia commigo á rua. Cuidava dos meus | |
| arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha hygiene e | |
| da minha prosodia. Aos oito annos os meus pluraes careciam, alguma vez, | |
| da desinencia exacta, elle a corrigia, meio serio para dar autoridade | |
| á licção, meio risonho para obter o perdão da emenda. Ajudava assim | |
| o mestre de primeiras lettras. Mais tarde, quando o padre Cabral me | |
| ensinava latim, doutrina e historia sagrada, elle assistia ás licções, | |
| fazia reflexões ecclesiasticas, e, no fim, perguntava ao padre: «Não | |
| é verdade que o nosso joven amigo caminha depressa?» Chamava-me «um | |
| prodigio»; dizia a minha mãe ter conhecido outr'ora meninos muito | |
| intelligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para a | |
| minha edade, possuia já certo numero de qualidades moraes solidas. Eu, | |
| posto não avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do elogio; | |
| era um elogio. | |
| XXV | |
| No Passeio Publico. | |
| Entrámos no Passeio Publico. Algumas caras velhas, outras doentes ou só | |
| vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vae da porta ao | |
| terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar animo, falei do | |
| jardim: | |
| --Ha muito tempo que não venho aqui, talvez um anno. | |
| --Perdôe-me, atalhou elle, não ha tres mezes que esteve aqui com o | |
| nosso visinho Padua; não se lembra? | |
| --É verdade, mas foi tão de passagem... | |
| --Elle pediu a sua mãe que o deixasse trazer comsigo, e ella, que é boa | |
| como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é | |
| bonito que você ande com o Padua na rua. | |
| --Mas eu andei algumas vezes... | |
| --Quando era mais joven; em creança, era natural, elle podia passar por | |
| creado. Mas você está ficando moco, e elle vae tomando confiança. D. | |
| Gloria, afinal, não pode gostar disto. A gente Padua não é de todo má. | |
| Capitú, apesar daquelles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou | |
| nos olhos della? São assim de cigana obliqua e dissimulada. Pois, | |
| apesar delles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. | |
| Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e elle não nego que seja | |
| honesto, tem um bom emprego, possue a casa em que móra, mas honestidade | |
| e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com | |
| as más companhias em que elle anda. Padua tem uma tendencia para gente | |
| réles. Em lhe cheirando a homem chulo é com elle. Não digo isto por | |
| odio, nem por que elle fale mal de mim e se ria, como se riu, ha dias, | |
| dos meus sapatos acalcanhados... | |
| --Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal | |
| do senhor; pelo contrario, um dia, não ha muito tempo, disse elle a um | |
| sujeito, em minha presença, que o senhor era «um homem de capacidade e | |
| sabia falar corno um deputado nas camaras.» | |
| José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou | |
| outra vez o rosto; depois replicou: | |
| --Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me tem feito o favor | |
| de juizos altos. E nada disso impede que elle seja o que lhe digo. | |
| Tinhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhámos para o mar. | |
| --Vejo que o senhor não quer senão o meu beneficio, disse eu depois de | |
| alguns instantes. | |
| --Pois que outra cousa, Bentinho? | |
| --Neste caso, peço-lhe um favor. | |
| --Um favor? Mande, ordene, que é? | |
| --Mamãe... | |
| Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de | |
| cór. José Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, | |
| levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ancioso tambem, como | |
| a prima Justina na vespera. | |
| --Mamãe quê? Que é que tem mamãe? | |
| --Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse | |
| finalmente. | |
| José Dias endireitou-se pasmado. | |
| --Não posso, continuei eu, não menos pasmado que elle, não tenho geito, | |
| não gósto da vida de padre. Estou por tudo o que ella quizer; mamãe | |
| sabe que eu faço tudo o que ella manda; estou prompto a ser o que fôr | |
| do seu agrado, até cocheiro de omnibus. Padre, não; não posso ser | |
| padre. A carreira é bonita, mas não é para mim. | |
| Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, | |
| peremptorio, como póde parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, | |
| em voz um pouco surda e timida. Não obstante, José Dias ouvira-o | |
| espantado. Não contava certamente com a resistencia, por mais acanhada | |
| que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão: | |
| --Conto com o senhor para salvar-me. | |
| Os olhos do aggregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, | |
| e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da protecção não se | |
| mostrou em nenhum dos musculos. Toda a cara delle era pouca para a | |
| estupefacção. Realmente, a materia do discurso revelára em mim uma alma | |
| nova; eu proprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um | |
| vigor unico. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram ás | |
| dimensões ordinarias: | |
| --Mas que posso eu fazer? perguntou. | |
| --Póde muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe | |
| pede muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é | |
| pessoa de talento... | |
| --São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, | |
| que merecem tudo... Ahi está! nunca ninguem me ha de ouvir dizer nada | |
| de pessoas taes; porque? porque são illustres e virtuosas. Sua mãe | |
| é uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitissimo. Tenho conhecido | |
| familias distinctas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de | |
| sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, | |
| mas é só um,--é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e | |
| de apreço. | |
| --Ha de ter tambem o de proteger os amigos, como eu. | |
| --Em que lhe posso valer, anjo do ceu? Não hei de dissuadir sua mãe | |
| de um projecto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos | |
| annos. Quando pudesse, é tarde. Ainda hontem fez-me o favor de dizer: | |
| «José Dias, preciso metter Bentinho no seminario.» | |
| Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é | |
| provavel que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe | |
| mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera á escuta, | |
| atraz da porta, e uma acção valia outra. Contentei-me de responder que | |
| não era tarde. | |
| --Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quizer. | |
| --Se eu quizer? Mas que outra cousa quero eu, senão servil-o? Que | |
| desejo, senão que seja feliz, como merece? | |
| --Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou prompto para | |
| tudo; se ella quizer que eu estude leis, vou para S. Paulo... | |
| XXVI | |
| As leis são bellas. | |
| Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma | |
| ideia,--uma ideia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns | |
| instantes; eu tinha os olhos nelle, elle voltara os seus para o lado da | |
| barra. Como insistisse: | |
| --É tarde, disse elle; mas, para lhe provar que não ha falta de | |
| vontade, irei falar a sua mãe. Não prometto vencer, mas lutar; | |
| trabalharei com alma. Devéras, não quer ser padre? As leis são bellas, | |
| meu querido... Póde ir a S. Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe. | |
| Ha boas universidades por esse mundo fóra. Vá para as leis, se tal é | |
| a sua vocação. Vou falar a D. Gloria, mas não conte só commigo; fale | |
| tambem a seu tio. | |
| --Hei de falar. | |
| --Pegue-se tambem com Deus,--com Deus e a Virgem Santissima, concluiu | |
| apontando para o ceu. | |
| O ceu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes passaros | |
| negros faziam giros, avoaçando ou pairando, e desciam a roçar os pés, | |
| na agua, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as | |
| sombras do ceu, nem as dansas fantasticas dos passaros me desviavam | |
| o espirito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, | |
| emendei-me: | |
| --Deus fará o que o senhor quizer. | |
| --Não blaspheme. Deus é dono de tudo; elle é, só por si, a terra e | |
| o ceu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, | |
| que eu não faço outra cousa... Uma vez que você não póde ser padre, e | |
| prefere as leis... As leis são bellas, sem desfazer na theologia, que | |
| é melhor que tudo, como a vida ecclesiastica é a mais santa... Porque | |
| não ha de ir estudar leis fóra daqui? Melhor é ir logo para alguma | |
| universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos; | |
| veremos as terras estranjeiras, ouviremos inglez, francez, italiano, | |
| hespanhol, russo e até sueco. D. Gloria provavelmente não poderá | |
| acompanhal-o; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negocios, | |
| papeis, matriculas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um | |
| lado para outro... Oh! as leis são bellissimas! | |
| --Está dito, pede a mamãe que me não metia no seminario? | |
| --Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se | |
| vontade de servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. | |
| Ali! você não imagina o que é a Europa; oh! a Europa... | |
| Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar á | |
| Europa, falava della muitos vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem | |
| tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as bellezas... Não contava | |
| com esta possibilidade de ir commigo, e lá ficar durante a eternidade | |
| dos meus estudos. | |
| --Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo! | |
| XXVII | |
| Ao portão. | |
| Ao portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou | |
| adiante, mas eu pensei em Capitú e no seminario, tirei dous vintens do | |
| bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse | |
| a Deus por mim, afim de que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos. | |
| --Sim, meu devoto! | |
| --Chamo-me Bento, accrescentei para esclarecel-o. | |
| XXVIII | |
| Na rua. | |
| José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, | |
| como era á rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, | |
| falava de tudo, fazia-me parar a cada passo deante de um mostrador | |
| ou de um cartaz de theatro. Contava-me o enredo de algumas peças, | |
| recitava monologos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, | |
| recebeu alugueis de casa; para si comprou um vigesimo de loteria. | |
| Afinal, o homem tezo rendeu o flexivel, e passou a falar pausado, com | |
| superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse | |
| mudado a resolução assentada, e entrei a tratal-o com palavras e gestos | |
| carinhosos, até entrarmos no omnibus. | |
| XXIX | |
| O imperador. | |
| Em caminho, encontrámos o imperador, que vinha da Escola de Medicina. | |
| O omnibus em que iamos parou, como todos os vehiculos; os passageiros | |
| desceram á rua e tiraram o chapeu, até que o coche imperial passasse. | |
| Quanto tornei ao meu logar, trazia uma ideia fantastica, a ideia de ir | |
| ter com o imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não | |
| confiaria. esta ideia a Capitú. «Sua Majestade pedindo, mamãe cede,» | |
| pensei commigo. | |
| Vi então o imperador escutando-me, reflectindo e acabando por dizer que | |
| sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lagrimas. E | |
| logo me achei cm casa, á espera, até que ouvi os batedores e o piquete | |
| de cavallaria; é o imperador! é o imperador! toda a gente chegava ás | |
| janellas para vel-o passar, mas não passava, o coche parava á nossa | |
| porta, o imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na visinhança: | |
| «O imperador entrou em casa de D. Gloria! Que será? Que não será? | |
| «A nossa familia saía a recebel-o; minha mãe era a primeira que lhe | |
| beijava a mão. Então o imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou | |
| entrando,--não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia | |
| a minha mãe que me não fizesse padre,--e ella, lisongeada e obediente, | |
| promettia que não. | |
| --A medicina,--porque lhe não manda ensinar medicina? | |
| Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade... | |
| --Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui | |
| bons professores. Nunca foi á nossa Escola? É uma bella Escola. Já | |
| temos medicos de primeira ordem, que pódem hombrear com os melhores de | |
| outras terras. A medicina é uma grande sciencia; basta só isto de dar | |
| a saude aos outros, conhecer as molestias, combatel-as, vencel-as... A | |
| senhora mesma ha de ter visto milagres. Seu marido morreu, mas a doença | |
| era fatal, e elle não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira; | |
| mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, | |
| Bentinho? | |
| --Mamãe querendo. | |
| --Quero, meu filho. Sua Majestade manda. | |
| Então o imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de | |
| todos nós, a rua cheia de gente, as janellas atopetadas, um silencio de | |
| assombro; o imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto | |
| de adeus, dizendo ainda: «A medicina, a nossa Escola.» E o coche partia | |
| entre invejas e agradecimentos. | |
| Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fertil | |
| que a das creanças e dos namorados, nem a visão do impossivel precisa | |
| mais que de um recanto de omnibus. Consolei-me por instantes, digamos | |
| minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos | |
| dos meus companheiros. | |
| XXX | |
| O Santissimo. | |
| Terás entendido que aquella lembrança do imperador ácerca da medicina | |
| não era mais que a suggestão da minha pouca vontade de sair do Rio de | |
| Janeiro. Os sonhos do accordado são como os outros sonhos, tecem-se | |
| pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que | |
| fosse para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito | |
| tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitú. | |
| --Parece que vae sair o Santíssimo, disse alguem no omnibus. Ouço um | |
| sino; é, creio que é em Santo Antonio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor! | |
| O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do | |
| cocheiro, o omnibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas | |
| rapidas á cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer comsigo. Iriamos | |
| tambem acompanhar o Santissimo. Effectivamente, o sino chamava os | |
| fieis áquelle serviço da ultima hora. Já havia algumas pessoas na | |
| sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; | |
| obedeci, a principio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos | |
| pela caridade do serviço que por me dar um officio de homem. Quando o | |
| sacristão começou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido; | |
| era o meu visinho Padua, que tambem ia acompanhar o Santissimo. Deu | |
| comnosco, veiu comprimentar-nos. José Dias fez um gesto de aborrecido, | |
| e apenas lhe respondeu com uma palavra secca, olhando para o padre, | |
| que lavava as mãos. Depois, como Padua falasse ao sacristão, baixinho, | |
| approximou-se delles; eu fiz a mesma cousa. Padua solicitava do | |
| sacristão uma das varas do pallio. José Dias pediu uma para si. | |
| --Ha só uma disponível, disse o sacristão. | |
| --Pois essa, disse José Dias. | |
| --Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Padua. | |
| --Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá | |
| estava. Leve uma tocha. | |
| Padua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, | |
| tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a | |
| rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do pallio | |
| que cedesse a vara ao Padua, conhecido na parochia, como José Dias. | |
| Assim fez; mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma | |
| vez que tinhamos outra vara disponivel, pedia-a para mim, «joven | |
| seminarista», a quem esta distincção cabia mais direitamente. Padua | |
| ficou pallido, como as tochas. Era pôr á prova o coração de um pae. O | |
| sacristão, que me conhecia de me ver alli com minha mãe, aos domingos, | |
| perguntou de curioso se eu era devéras seminarista. | |
| --Ainda não, mas vae sel-o, respondeu José Dias piscando o olho | |
| esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado. | |
| --Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pae de Capitú. | |
| Pela minha parte, quiz ceder-lhe a vara; lembrou-me que elle costumava | |
| acompanhar o Santissimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha, | |
| mas que a ultima vez conseguira uma vara do pallio. A distincção | |
| especial do pallio vinha de cobrir o vigario e o sacramento; para tocha | |
| qualquer pessoa servia. Foi elle mesmo que me contou e explicou isto, | |
| cheio de uma gloria pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço | |
| com que entrára na egreja; era a segunda vez do pallio, tanto que | |
| cuidou logo de ir pedil-o. E nada! E tornava á tocha commum, outra | |
| vez a interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo | |
| cargo... Quiz ceder-lhe a vara; o aggregado tolheu-me esse acto de | |
| generosidade, e pediu ao sacristão que nos puzesse, a elle e a mim, com | |
| as duas varas da frente, rompendo a marcha do pallio. | |
| Opas enfiadas, tochas distribuidas e accesas, padre e ciborio promptos, | |
| o sacristão de hyssope e campainha nos mãos, saiu o prestito á | |
| rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fieis, que se | |
| ajoelhavam, fiquei commovido. Padua roía a tocha amargamente. É uma | |
| metaphora, não acho outra fórma mais viva de dizer a dôr e a humilhação | |
| do meu visinho. De resto, não pude miral-o por muito tempo, nem ao | |
| aggregado, que, parallelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser | |
| elle proprio o Deus dos exercitos. Com pouco, senti-me cançado; os | |
| braços caíam-me, felizmente a casa era perto, na rua do Senado. | |
| A enferma era uma senhora viuva, tisica, tinha uma filha de quinze ou | |
| dezeseis annos, que estava chorando á porta do quarto. A moça não era | |
| formosa, talvez nem tivesse graça; os cabellos caíam despenteados, e | |
| as lagrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não obstante, o total | |
| falava e captivava o coração. O vigário confessou a doente, deu-lhe a | |
| communhão e os santos oleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti | |
| os meus olhos molhados e fugi. Vim para porto de uma jannela. Pobre | |
| creatura! A dor era communicativa em si mesma; complicada da lembrança | |
| de minha mãe, doeu-me mais, e, quando emfim pensei em Capitú, senti um | |
| impeto de soluçar tambem, enfiei pelo corredor, e ouvi alguem dizer-me: | |
| --Não chore assim! | |
| A imagem de Capitú ia commigo, e a minha imaginação, assim como lhe | |
| attribuira lagrimas, ha pouco, assim lhe encheu a bocca de riso agora; | |
| vi-a escrever no muro, falar-me, andar á volta, com os braços no ar; | |
| ouvi distinctamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a | |
| voz era della. As tochas accesas, tão lugubres na occasião, tinham-me | |
| ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Não sei; era | |
| alguma cousa contraria á morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta | |
| nova sensação me dominou tanto que José Dias veiu a mim, e me disse ao | |
| ouvido, em voz baixa: | |
| --Não ria assim! | |
| Fiquei serio depressa. Era o momento da saida. Peguei da minha vara; e, | |
| como já conhecia a distancia, e agora voltavamos para a egreja, o que | |
| fazia a distancia menor,--o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol | |
| cá fora, a animação da rua, os rapazes da minha edade que me fitavam | |
| cheios de inveja, as devotas que chegavam ás janellas ou entravam nos | |
| corredores e se ajoelhavam á nossa passagem, tudo me enchia a alma de | |
| lepidez nova. | |
| Padua, ao contrario, ia mais humilhado. Apesar de substituido por mim, | |
| não acabava de se consolar da tocha, da miseravel tocha. E comtudo | |
| havia outros que tambem traziam tocha, e apenas mostravam a compostura | |
| do acto; não iam garridos, mas tambem não iam tristes. Via-se que | |
| caminhavam com honra. | |
| XXXI | |
| As curiosidades de Capitú. | |
| Capitú preferia tudo ao seminario. Em vez de ficar abatida com a | |
| ameaça da larga separação, se vingasse a ideia da Europa, mostrou-se | |
| satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial: | |
| --Não, Bentinho, deixemos o imperador socegado, replicou; fiquemos por | |
| ora com a promessa de José Dias. Quando é que elle disse que falaria a | |
| sua mãe? | |
| --Não marcou dia; prometteu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e | |
| que me pegasse com Deus. | |
| Capitú quiz que lhe repetisse as respostas todas do aggregado, as | |
| alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contára. Pedia o | |
| som das palavras. Era minuciosa e attenta; a narração e o dialogo, tudo | |
| parecia remoer comsigo. Tambem se póde dizer que conferia, rotulava e | |
| pregava na memoria a minha exposição. Esta imagem é por ventura melhor | |
| que a outra, mas a optima dellas é nenhuma. Capitú era Capitú, isto é, | |
| uma creatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda | |
| o não disse, ahi fica. Se disse, fica tambem. Ha conceitos que se devem | |
| incutir na alma do leitor, á força de repetição. | |
| Era tambem mais curiosa. As curiosidades de Capitú dão para um | |
| capitulo. Eram de varia especie, explicaveis e inexplicaveis, assim | |
| uteis como inuteis, umas graves, outras frivolas; gostava de saber | |
| tudo. No collegio onde, desde os sete annos, apprendera a ler, escrever | |
| e contar, francez, doutrina e obras de agulha, não apprendeu, por | |
| exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quiz que prima Justtina lh'o | |
| ensinasse. Se não estudou latim com o padre Cabral foi porque o padre, | |
| depois de lh'o propôr gracejando, acabou dizendo que latim não era | |
| lingua de meninas. Capitú confessou-me um dia que esta razão accendeu | |
| nella o desejo de o saber. Em compensação, quiz apprender inglez com | |
| um velho professor amigo do pae e parceiro deste ao sólo, mas não foi | |
| adeante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão. | |
| --Anda apanhar um capotinho, Capitú, dizia-lhe elle. | |
| Capitú obedecia e jogava com facilidade, com attenção, não sei se diga | |
| com amor. Um dia fui achal-a desenhando a lapís um retraio; dava os | |
| ultimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. | |
| Era o de meu pae, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que | |
| ainda agora está commigo. Perfeição não era; ao contrario, os olhos | |
| sairam esbogalhados, e os cabellos eram pequenos circulos uns sobre | |
| outros. Mas, não tendo ella rudimento algum de arte, e havendo feito | |
| aquillo de memoria em poucos minutos, achei que era obra de muito | |
| merecimento; descontai-me a edade e a sympathia. Ainda assim, estou | |
| que apprenderia facilmente pintura, como apprendeu musica mais tarde. | |
| Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inutil, apenas | |
| de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de | |
| gravuras, querendo saber das ruinas, das pessoas, das campanhas, o | |
| nome, a historia, o lograr. José Dias dava-lhe essas noticias com certo | |
| orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua | |
| homoepathia de Cantagallo. | |
| Um dia, Capitú quiz saber o que eram as figuras da sala de visitas. O | |
| aggregado disse-lho summariamente, demorando-se um pouco mais em Cesar, | |
| com exclamações e latins: | |
| --Cesar! Julio Cesar! Grande homem! _Tu quoque, Brute?_ | |
| Capitú não achava bonito o perfil de Cesar, mas as acções citadas por | |
| José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara | |
| virada para elle. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que | |
| dava a uma senhora uma perola do valor de seis milhões de sestercios! | |
| --E quanto valia cada sestercio? | |
| José Dias, não tendo presente o valor do sestercio, respondeu | |
| enthusiasmado: | |
| --É o maior homem da historia! | |
| A perola de Cesar accendia os olhos de Capitú. Foi nessa occasião | |
| que ella perguntou a minha mãe porque é que já não usava as joias do | |
| retrato; preferia-se ao que estava na sala, com o de meu pae; tinha um | |
| grande collar, um diadema e brincos. | |
| --São joias viuvas, como eu, Capitú. | |
| --Quando é que botou estas? | |
| --Foi pelas festas da Coroação. | |
| --Oh! conte-me as festas da Coroação! | |
| Sabia já o que os paes lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para | |
| si que elles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. | |
| Queria a noticia das tribunas da Capella Imperial e dos salões dos | |
| bailes. Nascera muito depois daquellas festas celebres. Ouvindo falar | |
| varias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este | |
| acontecimento; disseram-lh'o, e achou que o imperador fizera muito | |
| bem em querer subir ao throno aos quinze annos. Tudo era materia ás | |
| curiosidades de Capitú, mobilias antigas, alfaias velhas, costumes, | |
| noticias de Itaguahy, a infancia e a mocidade de minha mãe, um dito | |
| daqui, uma lembrança dalli, um adagio d'acolá... | |
| XXXII | |
| Olhos de ressaca. | |
| Tudo era materia ás curiosidades de Capitú. Caso houve, porém, no qual | |
| não sei se apprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É | |
| o que contarei no outro capitulo. N'este direi sómente que, passados | |
| alguns dias do ajuste com o aggregado, fui ver a minha amiga; eram dez | |
| horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu | |
| lhe perguntasse pela filha. | |
| --Está na sala penteando o cabello, disse-me; vá devagarzinho para lhe | |
| pregar um susto. | |
| Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este póde ser que não | |
| fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a | |
| um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da | |
| parede, entre as duas janellas. Se não foi elle, foi o pé. Um ou outro, | |
| a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabellos, toda ella | |
| voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta: | |
| --Ha alguma cousa? | |
| --Não ha nada, respondi; vim ver você antes que o padre Cabral chegue | |
| para a licção. Como passou a noite? | |
| --Eu bem. José Dias ainda não falou? | |
| --Parece que não. | |
| --Mas então quando fala? | |
| --Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assumpto; não vae | |
| logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, | |
| entrará em materia. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita... | |
| --Que tem, tem, interrompeu Capitú. E se não fosse preciso alguem para | |
| vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias | |
| poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente | |
| não quer ser padre, mas poderá alcançar...? Elle é attendido; se, | |
| porém... É um inferno isto! Você teime com elle, Bentinho. | |
| --Teimo; hoje mesmo elle ha de falar. | |
| --Você jura? | |
| --Juro! Deixe ver os olhos, Capitú. | |
| Tinha-me lembrado a definição que José dera delles, «olhos de cigana | |
| obliqua e dissimulada.» Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada | |
| sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitú deixou-se fitar e | |
| examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei | |
| extraordinário; a côr e a doçura eram minhas lhe deu outra ideia | |
| do meu intento; imaginou que era um pretexto para miral-os mais de | |
| perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados nelles, e á isto | |
| attribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal | |
| expressão que... | |
| Rhetorica dos namorados, dá-me uma comparação exacta e poetica para | |
| dizer o que foram aquelles olhos de Capitú. Não me acode imagem capaz | |
| de dizer, sem quebra da dignidade do estylo, o que elles foram e me | |
| fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquella | |
| feição nova. Traziam não sei que fluido mysterioso e energico, uma | |
| força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, | |
| nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me ás outras | |
| partes visinhas, ás orelhas, aos braços, aos cabellos espalhados pelos | |
| hombros; mas tão depressa buscava as pupillas, a onda que saía dellas | |
| vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e | |
| tragar-me. Quantos minutos gastámos naquelle jogo? Só os relogios do | |
| ceu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas | |
| pendulas nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das | |
| felicidades e dos supplicios. Ha de dobrar o gozo aos bemaventurados | |
| do ceu conhecer a somma dos tormentos que já terão padecido no inferno | |
| os seus inimigos; assim tambem a quantidade das delicias que terão | |
| gozado no ceu os seus desaffectos augmentará as dores aos condemnados | |
| do inferno. Este outro supplicio escapou ao divino Dante; mas eu não | |
| estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um | |
| tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabellos de Capitú, | |
| mas então com as mãos, e disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era | |
| capaz de os pentear, se quizesse. | |
| --Você? | |
| --Eu mesmo. | |
| --Vae embaraçar-me o cabello todo, isso, sim. | |
| --Se embaraçar, você desembaraça depois. | |
| --Vamos ver. | |
| XXXIII | |
| O penteado. | |
| Capitú deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos | |
| cabellos, colhi-os todos e entrei a alisal-os com o pente, desde a | |
| testa até ás ultimas pontas, que lhe desciam á cintura. Em pé não dava | |
| geito: não esquecestes que ella era um nadinha mais alta que eu, mas | |
| ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse. | |
| --Senta aqui, é melhor. | |
| Sentou-se. «Vamos ver o grande cabelleireiro», disse-me rindo. | |
| Continuei a alisar os cabellos, com muito cuidado, e dividi-os em duas | |
| porções eguaes, para compor as duas trancas. Não as fiz logo, nem assim | |
| depressa, como podem suppôr os cabelleireiros de officio, mas devagar, | |
| devagarinho, saboreando pelo tacto aquelles fios grossos, que eram | |
| parte della. O trabalho era atrapálhado, ás vezes por desaso, outras | |
| de proposito, para desfazer o feito e refazel-o. Os dedos roçavam na | |
| nuca da pequena ou nas espaduas vestidas de chita, e a sensação era | |
| um deleite. Mas, emfim, os cabellos iam acabando, por mais que eu os | |
| quizesse interminaveis. Não pedi ao ceu que elles fossem tão longos | |
| como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os | |
| velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteal-os por | |
| todos os seculos dos seculos, tecer duas tranças que pudessem envolver | |
| o infinito por um numero innominavel de vezes. Se isto vos parecer | |
| emphatico, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca | |
| puzestes aos mãos adolescentes na joven cabeça de uma nympha... Uma | |
| nympha! Todo eu estou mythologico. Ainda ha pouco, falando dos seus | |
| olhos de ressaca, cheguei a escrever Thetis; risquei Thetis, risquemos | |
| nympha; digamos somente uma creatura amada, palavra que envolve todas | |
| as potencias christãs e pagãs. Emfim, acabei as duas tranças. Onde | |
| estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste | |
| pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um | |
| laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando alli, até que exclamei: | |
| --Prompto! | |
| --Estará bom? | |
| --Veja no espelho. | |
| Em vez de ir ao espelho, que pensaes que fez Capitú? Não vos esqueçaes | |
| quo estava sentada, de costas para mim. Capitú derreou a cabeça, a tal | |
| ponto que me foi preciso acudir com as mãos e amparal-a; o espaldar | |
| da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ella, rosto a rosto, | |
| mas trocados, os olhos de um na linha da bocca do outro. Pedi-lhe que | |
| levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a | |
| dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu. | |
| --Levanta, Capitú! | |
| Não quiz, não levantou a cabeça, e ficámos assim a olhar um para o | |
| outro, até que ella abrochou os labios, eu desci os meus, e... | |
| Grande foi a sensação do beijo; Capitú ergueu-se, rapida, eu recuei | |
| até á parede com uma especie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. | |
| Quando elles me clarearam, vi que Capitú tinha os seus no chão. Não | |
| me atrevi a dizer nada; ainda que quizesse, faltava-me lingua. Preso, | |
| atordoado, não achava gesto nem impeto que me descolasse da parede e me | |
| atirasse a ella com mil palavras callidas e mimosas... Não mofes dos | |
| meus quinze annos, leitor precoce. Com dezesete, Des Grieux (e mais era | |
| Des Grieux) não pensava ainda na differença dos sexos. | |
| XXXIV | |
| Sou homem! | |
| Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitú compoz-se | |
| depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou á porta, ella | |
| abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarello. nenhuma contracção de | |
| acanhamento, um riso espontaneo e claro, que ella explicou por estas | |
| palavras alegres: | |
| --Mamãe, olhe como este senhor cabelleireiro me penteou; pediu-me para | |
| acabar o penteado, e fez isto. Veja que tranças! | |
| --Que tem? acudiu a mãe, transbordando de benevolencia. Está muito bem, | |
| ninguem dirá que é de pessoa que não sabe pentear. | |
| --O que, mamãe? Isto? redarguiu Capitú desfazendo as tranças. Ora, | |
| mamãe! | |
| E com um enfadamento gracioso e voluntario que ás vezes tinha, pegou | |
| do pente e alisou os cabellos para renovar o penteado. D. Fortunata | |
| chamou-lhe tonta, e disse-me que não fizesse caso, não era nada, | |
| maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e para ella. Depois, | |
| parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido á parede, | |
| achou talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por | |
| dissimulação... | |
| Como eu quizesse falar tambem para disfarçar o meu estado, chamei | |
| algumas palavras cá de dentro, e ellas acudiram de prompto, mas de | |
| atropello, e encheram-me a bocca sem poder sair nenhuma. O beijo de | |
| Capitú fechava-me os labios. Uma exclamação, um simples artigo, por | |
| mais que investissem com força, não logravam romper de dentro. E todas | |
| as palavras recolheram-se ao coração, murmurando: «Eis aqui um que não | |
| fará grande carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem...» | |
| Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrarios, ella encobrindo | |
| com a palavra o que eu publicava pelo silencio. D. Fortunata tirou-me | |
| daquella hesitação, dizendo que minha mãe me mandára chamar para a | |
| licção de latim; o padre Cabral estava á minha espera. Era uma saida; | |
| despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe censurava as | |
| maneiras da filha, mas a filha não dizia nada. | |
| Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei a sala da | |
| licção; sentei-me na cama, recordando o penteado e o resto. Tinha | |
| estremeções, linha uns esquecimentos em que perdia a consciencia de | |
| mim e das cousas que me rodeavam, para viver não sei onde nem como. | |
| E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia | |
| algum som de fóra, vago, proximo ou remoto, e logo perdia tudo para | |
| sentir sómente os beiços de Capitú... Sentia-os estirados, embaixo dos | |
| meus, egualmente esticados para os della, e unindo-se uns aos outros. | |
| De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de | |
| orgulho: | |
| --Sou homem! | |
| Suppuz que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e | |
| corri á porta da alcova. Não havia ninguem fóra. Voltei para dentro, | |
| e, baixinho, repeti que era homem. Ainda agora tenho o éco aos meus | |
| ouvidos. O gosto que isto me deu foi enorme. Colombo não o teve maior, | |
| descobrindo a America, e perdoai a banalidade em favor do cabimento; | |
| com effeito, ha em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e | |
| um sol de Outubro. Fiz outros achados mais tarde; nenhum me deslumbrou | |
| tanto. A denuncia de José Dias alvoroçara-me, a licção do velho | |
| coqueiro tambem, a vista dos nossos nomes abertos por ella no muro do | |
| quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensação | |
| do beijo. Podiam ser mentira ou illusão. Sendo verdade, eram os ossos | |
| da verdade, não eram a carne e o sangue della. As proprias mãos | |
| tocadas, apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo. | |
| --Sou homem! | |
| Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminario, mas como | |
| se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extincto; | |
| todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue | |
| era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitú. Talvez abuso | |
| um pouco das reminiscencias osculares; mas a saudade é isto mesmo; é o | |
| passar e repassar das memorias antigas. Ora, de todas as daquelle tempo | |
| creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais comprehensiva, a que | |
| inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, | |
| doces tambem, de varia especie, muitas intellectuaes, egualmente | |
| intensas. Grande homem que fosse, a recordação era menor que esta. | |
| XXXV | |
| O protonotario apostolico. | |
| Enfim, peguei dos livros e corri á licção. Não corri precisamente; a | |
| meio caminho parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam | |
| ler-me no semblante alguma cousa. Tive ideia de mentir, allegar uma | |
| vertigem que me houvesse deitado ao chão; mas o susto que causaria | |
| a minha mãe fez-me rejeital-a. Pensei em prometter algumas dezenas | |
| de padre-nossos; tinha, porém, outra promessa em aberto e outro | |
| favor pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres, | |
| conversavam cuidadosamente. Quando entrei na sala, ninguem ralhou | |
| commigo. | |
| O padre Cabral recebera na vespera um recado do internuncio; foi | |
| ter com elle, e soube que, por decreto pontificio, acabava de ser | |
| nomeado protonotario apostolico. Esta distincção do papa dera-lhe | |
| grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima Justina | |
| repetiam o titulo com admiração; era a primeira vez que elle soava aos | |
| nossos ouvidos, acostumados a conegos, monsenhores, bispos, nuncios, | |
| e internuncios; mas que era protonotario apostolico? O padre Cabral | |
| explicou que não era propriamente o cargo da curia, mas as honras | |
| delle. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de voltarete, e repetia: | |
| --Protonotario apostolico! | |
| E voltando-se para mim: | |
| --Prepara-te, Bentinho; tu pódes vir a ser protonotario apostolico. | |
| Cabral ouvia com gosto a repetição do titulo. Estava em pé, dava alguns | |
| passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do titulo | |
| como que lhe dobrava a magnificencia, posto que, para ligal-o ao nome, | |
| era demasiado comprido; esta segunda reflexão foi tio Cosme que a fez. | |
| Padre Cabral acudiu que não era preciso dizel-o todo, bastava que lhe | |
| chamassem o protonotario Cabral. Subentendia-se apostolico. | |
| --Protonotario Cabral. | |
| --Sim, tem razão; protonotario Cabral. | |
| --Mas, Sr. protonotario,--acudiu prima Justina para se ir acostumando | |
| ao uso do titulo,--isto o obriga a ir a Roma? | |
| --Não, D. Justina. | |
| --Não, são só as honras, observou minha mãe. | |
| --Agora, não impede,--disse Cabral, que continuava a reflectir,--não | |
| impede que nos casos de maior formalidade, actos publicos, cartas | |
| de cerimonia, etc., se empregue o titulo inteiro: protonotario | |
| apostolico. No uso commum, basta protonotario. | |
| --Justamente, assentiram todos. | |
| José Dias, que entrou pouco depois de mim, applaudiu a distincção, e | |
| recordou, a proposito, os primeiros actos politicos de Pio IX, grandes | |
| esperanças da Italia; mas ninguem pegou do assumpto; o principal da | |
| hora e do logar era o meu velho mestre de latim. Eu, voltando a mim | |
| do receio, entendi que devia comprimental-o tambem, e este applauso | |
| não lhe foi menos ao coração que os outros. Bateu-me na bochecha | |
| paternalmente, e acabou dando-me férias. Era muita felicidade para uma | |
| só hora. Um beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, | |
| porque tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas José Dias | |
| corrigiu a alegria: | |
| --Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe ha de ser | |
| preciso, _ainda que não venha a ser padre._ | |
| Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente lançada á | |
| terra, assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da familia. | |
| Minha mãe sorriu para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu | |
| logo: | |
| --Ha de ser padre, e padre bonito. | |
| --Não esqueça, mana Gloria, e protonotario tambem. Protonotario | |
| apostolico. | |
| --O protonotario Santiago, accentuou Cabral. | |
| Se a intenção tio meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do | |
| titulo com o nome, não sei bem; o que sei é que quando ouvi o meu | |
| nome ligado a tal titulo, deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a | |
| vontade aqui foi antes uma ideia, uma ideia sem lingua, que se deixou | |
| ficar quieta e muda, tal como d'ahi a pouco outras ideias... Mas | |
| essas pedem um capitulo especial. Rematemos este dizendo que o mestre | |
| de latim falou algum tempo da minha ordenação ecclesiastica, ainda | |
| que sem grande interesse. Elle buscava um assumpto alheio para se | |
| mostrar esquecido da propria gloria, mas era esta que o deslumbrava na | |
| occasião. Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns | |
| defeitos tinha; o mais excelso delles era ser guloso, não propriamente | |
| glotão; comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa cosinha, | |
| se era simples, era menos pobre que a delle. Assim, quando minha mãe | |
| lhe disse que viesse jantar, afim de se lhe fazer uma saude, os olhos | |
| com que acceitou seriam de protonotario, mas não eram aposlolicos. E | |
| para agradar a minha mãe novamente pegou em mim, descrevendo o meu | |
| futuro ecclesiastico, e queria saber se ia para o seminario agora, no | |
| anuo proximo, e offerecia-se a falar ao «senhor bispo», tudo marchetado | |
| do «protonotario Santiago.» | |
| XXXVI | |
| Ideia sem pernas e ideia sem braços. | |
| Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na | |
| aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com | |
| latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo á casa visinha, | |
| agarrar Capitú, desfazer-lhe as tranças, refazel-as e concluil-as | |
| daquella maneira particular, bocca sobre bocca. É isto, vamos, é | |
| isto... Ideia só! ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr | |
| nem andar. Muito depois é que sairam vagarosamente e levaram-me á | |
| casa de Capitú. Quando alli cheguei, dei com ella na sala, na mesma | |
| sala, sentada na marqueza, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me | |
| olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a phraseologia | |
| do aggregado, obliqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de | |
| encravada a agulha no panno. Eu, do lado opposto da mesa, não sabia que | |
| fizesse; e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim gastámos | |
| alguns minutos compridos, até que ella deixou inteiramente a costura, | |
| ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ella, e perguntei se a mãe havia | |
| dito alguma cousa; respondeu-me que não. A bocca com que respondeu era | |
| tal que cuido haver-me provocado um gesto de approximação. Certo é que | |
| Capitú recuou um pouco. | |
| Era occasião de pegal-a, puxal-a e beijal-a... Ideia só ideia sem | |
| braços! Os meus ficaram caidos e mortos. Não conhecia nada da | |
| Escriptura. Se conhecesse, é provavel que o espirito de Satanaz me | |
| fizesse dar a lingua mystica do _Cantico_ um sentido directo e natural. | |
| Então obedeceria ao primeiro versiculo; «Applique elle os labios, | |
| dando-me o osculo da sua bocca.» E pelo que respeita aos braços, que | |
| tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6.o do cap. II: | |
| «A sua mão esquerda se pôz já debaixo da minha cabeça, e a sua mão | |
| direita me abraçará depois.» Vedes ahi a chronologia dos gestos. Era só | |
| executal-a; mas ainda que eu conhecesse o texto, as attitudes de Capitú | |
| eram agora tão retrahidas, que não sei se não continuaria parado, foi | |
| ella entretanto, que me tirou daquella situação. | |
| XXXVII | |
| A alma é cheia de mysterios. | |
| Padre Cabral eslava esperando ha muito tempo? | |
| --Hoje não dei licção; tive férias. | |
| Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe tambem que o padre Cabral | |
| falara da minha entrada no seminario, apoiando a resolução de minha | |
| mãe, e disse delle cousas feias e duras. Capitú reflectiu algum tempo, | |
| e acabou perguntando-me se podia ir comprimentar o padre, á tarde, em | |
| minha casa. | |
| --Póde, mas para que? | |
| Papae naturalmente ha de querer ir tambem, mas é melhor que elle vá á | |
| casa do padre; é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu | |
| rindo. | |
| O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça comsigo mesma, uma | |
| vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, | |
| e, para dizer tudo, quiz provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe | |
| levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e | |
| tremulo. Era a ideia com mãos. Quiz puxar as de Capitú, para obrigal-a | |
| a vir atraz dellas, mas ainda agora a acção não respondeu á intenção. | |
| Comtudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguem; não vivia com | |
| rapazes, que me ensinassem anecdotas de amor. Não conhecia a violação | |
| de Lucrecia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do | |
| padre Pereira e eram patricios de Poncio Pilatos. Não nego que o final | |
| do penteado da manhã era um grande passo no caminho da movimentação | |
| amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrario deste. De | |
| manhã, ella derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os | |
| lances differiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve | |
| contraste. | |
| Penso que ameacei puxal-a a mim. Não juro, começava a estar tão | |
| alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos meus actos; mas | |
| concluo que sim, porque ella recuou e quiz tirar as mãos das minhas; | |
| depois, talvez por não poder recuar mais, collocou um dos pés adeante | |
| e o outro atraz, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou | |
| a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cançou e cedeu, mas a | |
| cabeça não quiz ceder tambem, e, caida para traz, inutilisava lodos | |
| os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não | |
| conhecendo a licção do _Cantico_, não me acudiu estender a mão esquerda | |
| por baixo do cabeça della; demais, este gesto suppõe um accordo de | |
| vontades, e Capitú, que me resistia agora, aproveitaria o gesto para | |
| arrancar-se á outra mão e fugir-me inteiramente. Ficámos naquelle luta, | |
| sem estrepito, porque apesar do ataque e da defesa, não perdiamos a | |
| cautela necessaria para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é cheia | |
| de mysterios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar, até | |
| que cançou; mas então foi a vez da bocca. A bocca de Capitú iniciou um | |
| movimento inverso, relativamente á minha, indo para um lado, quando | |
| eu a buscava do lado opposto. Naquelle desencontro estivemos, sem que | |
| ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais... | |
| Nisto ouvimos bater á porta e falar no corredor. Era o pae de Capitú, | |
| que voltava da repartição um pouco mais cedo, como usava ás vezes. | |
| «Abre, Nanata! Capitú, abre!» Apparentemente era o mesmo lance da | |
| manhã, quando a mãe deu comnosco, mas só apparentemente; em verdade, | |
| era outro. Considerai que de manhã tudo estava acabado, e o passo de D. | |
| Fortunata foi um aviso para que nos compuzessemos. Agora lutavamos com | |
| as mãos presas, e nada estava sequer começado. | |
| Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mãe | |
| que abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo | |
| de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tental-o, mas | |
| Capitú, antes que o pae acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, | |
| pousou a bocca na minha bocca, e deu de vontade o que estava a recusar | |
| á força. Repito, a alma é cheia de mysterios. | |
| XXXVIII | |
| Que susto, meu Deus! | |
| Quando Padua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, | |
| Capitú, em pé, de costas para mim, inclinada sobre a costura, como a | |
| recolhel-a, perguntava em voz alta: | |
| --Mas, Bentinho, que ó protonotario apostolico? | |
| --Ora, vivam! exclamou o pae. | |
| --Que susto, meu Deus! | |
| Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, taes quaes, os | |
| dous lances de ha quarenta annos, é para mostrar que Capitú não se | |
| dominava só em presença da mãe; o pae não lhe metteu mais medo. No | |
| meio de uma situação que me atava a lingua, usava da palavra com a | |
| maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não | |
| lhe batia mais mais nem menos. Allegou susto, e deu á cara um ar meio | |
| enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com | |
| inveja. Foi logo falar ao pae, que apertou a minha mão, e quiz saber | |
| porque a filha falava em protonotario apostolico. Capitú repeliu-lhe | |
| o que ouvira de mim, e opinou logo que o pae devia ir comprimentar o | |
| padre em casa delle; ella iria á minha. E colligindo os petrechos da | |
| costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente: | |
| --Mamãe, jantar, papae chegou! | |
| XXXIX | |
| A vocação. | |
| Padre Cabral estava naquella primeira hora das honras em que as | |
| minimas congratulações valem por odes. Tempo chega em que os | |
| dignificados recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, | |
| sem agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor; esse estado | |
| da alma que vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém | |
| da flora universal, traz sensações mais intimas e finas que qualquer | |
| outro. Cabral ouviu as palavras de Capitú com infinito prazer. | |
| --Obrigado, Capitú, muito obrigado; estimo que você goste tambem. Papae | |
| está bom? E mamãe? A voce não se pergunta; essa cara é mesmo de quem | |
| vende saude. E como vamos de rezas? | |
| A todas as perguntas, Capitú ia respondendo promptamente e bem. | |
| Trazia um vestidinho melhor e os sapatos de sair. Não entrou com a | |
| familiaridade do costume, deteve-se um instante á porta da sala, antes | |
| de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre. Como désse a este, duas | |
| vezes em cinco minutos, o titulo de protonotario, José Dias, para se | |
| desforrar da concurrencia, fez um pequeno discurso em honra «ao coração | |
| paternal e augustissimo de Pio IX.» | |
| --Você é um grande _prosa_, disse tio Cosme, quando elle acabou. | |
| José Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do | |
| aggregado, sem os seus superlativos; ao que este accrescentou que | |
| o cardeal Mastai evidentemente fôra talhado para a tiára desde o | |
| principio dos tempos. E, piscando-me o olho, concluiu: | |
| --A vocação é tudo. O estado ecclesiastico é perfeitissimo, comtanto | |
| que o sacerdote venha já destinado do berço. Não havendo vocação, falo | |
| de vocação sincera e real, um joven póde muito bem estudar as lettras | |
| humanas, que tambem são uteis e honradas. | |
| Padre Cabral retorquia: | |
| --A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem póde não | |
| ter gosto á egreja e até perseguil-a, e um dia a voz de Deus lhe fala, | |
| e elle sae apostolo; veja S. Paulo. | |
| --Não contesto, mas o que eu digo é outra cousa. O que eu digo é que se | |
| póde muito bem servir a Deus sem ser padre, cá fóra; póde-se ou não se | |
| póde? | |
| --Póde-se. | |
| --Pois então! exclamou José Dias triumphalmente, olhando em volta de | |
| si. Sem vocação é que não ha bom padre, e em qualquer profissão liberal | |
| se serve a Deus, como todos devemos. | |
| --Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz. | |
| --Homem, é a melhor. | |
| --Um moço sem gosto nenhum á vida ecclesiastica póde acabar por ser | |
| muito bom padre; tudo é que Deus o determine. Não me quero dar por | |
| modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da medicina; meu | |
| padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou com meu pae para que | |
| me mettesse no seminario; meu pae cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto | |
| aos estudos e á companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas, | |
| supponha que não acontecia assim, e que eu não mudava de vocação, o que | |
| é que acontecia? Tinha estudado no seminario algumas materias que é bom | |
| saber, e são sempre melhor ensinadas naquellas casas. | |
| Prima Justina interveiu: | |
| --Como? Então póde-se entrar para o seminario e não sair padre? | |
| Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para | |
| mim, falou da minha vocação, que era manifesta; os meus brinquedos | |
| foram sempre de egreja, e eu adorava os officios divinos. A prova | |
| não provava; todas as creanças do meu tempo eram devotas. Cabral | |
| accrescentou que o reitor de S. José, a quem contara ultimamente a | |
| promessa de minha mãe, tinha o meu nascimento por milagre; elle era | |
| da mesma opinião. Capitú, cosida ás saias de minha mãe, não attendia | |
| aos olhos anciosos que eu lhe mandava; tambem não parecia escutar a | |
| conversação sobre o seminario e suas consequencias, e, aliás, decorou o | |
| principal, como vim a saber depois. Duas vezes fui á janella, esperando | |
| que ella fosse tambem, e ficassemos á vontade, sósinhos, até acabar o | |
| mundo, se acabasse, mas Capitú não me appareceu. Não deixou minha mãe, | |
| senão para ir embora. Eram ave-marias, despediu-se. | |
| --Vae com ella, Bentinho, disse minha mãe. | |
| --Não precisa, não, D. Gloria, acudiu ella rindo, eu sei o caminho. | |
| Adeus, Sr. protonotario... | |
| --Adeus, Capitú. | |
| Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o | |
| meu dever, o meu gosto, todos os impulsos da edade e da occasião | |
| eram atravessal-a de todo, seguir a visinha corredor fóra, descer á | |
| chacara, entrar no quintal, dar-lhe terceiro beijo, e despedir-me. Não | |
| me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; | |
| mas, Capitú que ia depressa, estacou e fez-me signal que voltasse. Não | |
| obedeci; cheguei-me a ella. | |
| --Não venha, não; amanhã falaremos. | |
| --Mas eu queria dizer a você... | |
| --Amanhã. | |
| --Escuta! | |
| --Fica! | |
| Falava baixinho; pegou-me na mão, e poz o dedo na bocca. Uma preta, | |
| que veiu de dentro accender o lampião do corredor, vendo-nos naquella | |
| attitude, quasi ás escuras, riu de sympathia e murmurou em tom que | |
| ouvissemos alguma cousa que não entendí bem nem mal. Capitú segredou-me | |
| que a escrava desconfiara, e ia talvez contar ás outras. Novamente me | |
| intimou que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado, | |
| agarrado ao chão. | |
| XL | |
| Uma egua. | |
| Ficando só, reflecti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as | |
| minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta | |
| casa do Engenho Novo, reproduzindo a de Matacavallos... A imaginação | |
| foi a companheira de toda a minha existencia, viva, rapida, inquieta, | |
| alguma vez timida e amiga de empacar, as mais dellas capaz de engolir | |
| campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tacito que as | |
| eguas iberas concebiam pelo vento; se não foi nelle, foi n'outro autor | |
| antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste | |
| particular, a minha imaginação era uma grande egua ibera; a menor brisa | |
| lhe dava um potro, que saía logo cavallo de Alexandre; mas deixemos | |
| metaphoras atrevidas e improprias dos meus quinze annos. Digamos o | |
| caso simplesmente. A fantasia daquella hora foi confessar a minha mãe | |
| os meus amores para lhe dizer que não tinha vocação ecclesiastica. A | |
| conversa sobre vocação tornava-me agora toda inteira, e, ao passo que | |
| me assustava, abria-me uma porta de saida. «Sim, é isto, pensei; vou | |
| dizer a mamãe que não tenho vocação e confesso o nosso namoro; se ella | |
| duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia, o penteado e o resto... » | |
| XLI | |
| A audiencia secreta. | |
| O resto fez-me ficar mais algum tempo, no corredor, pensando. Vi entrar | |
| o doutor João da Costa, e preparou-se logo o voltarete do costume. | |
| Minha mãe saiu da sala, e, dando commigo, perguntou se acompanhara | |
| Capitú. | |
| --Não, senhora, ella foi só. | |
| E quasi investindo para ella: | |
| --Mamãe, eu queria dizer-lhe uma cousa. | |
| --Que é? | |
| Toda assustada, quiz saber o que é que me doia, se a cabeça, se o | |
| peito, se o estomago, e apalpava-me a testa para ver se tinha febre. | |
| --Não tenho nada, não, senhora. | |
| --Mas então que é? | |
| --É uma cousa, mamãe... Mas, escute, olhe, é melhor depois do chá; | |
| logo... Não é nada mau; mamãe assusta-se por tudo; não é cousa de | |
| cuidado. | |
| --Não é molestia? | |
| --Não, senhora. | |
| --É, isso é volta de constipação. Disfarças para não tomar suadouro, | |
| mas tu estás constipado; conhece-se pela voz. | |
| Tentei rir, para mostrar que não tinha nada. Nem por isso permittiu | |
| adiar a confidencia, pegou em mim, levou-me ao quarto della, accendeu | |
| vela, e ordenou-me que lhe dissesse tudo. Então eu perguntei-lhe, para | |
| principiar, quando é que ia para o seminario. | |
| --Agora só para o anno, depois das férias. | |
| --Vou... para ficar? | |
| --Como ficar? | |
| --Não volto para casa? | |
| --Voltas aos sabbados e pelas férias; é melhor. Quando te ordenares | |
| padre, vens morar commigo. | |
| Enxuguei os olhos e o nariz. Ella afagou-me, depois quiz | |
| reprehender-me, mas creio que a voz lhe tremia, e pareceu-me que tinha | |
| os olhos humidos. Disse-lhe que tambem sentia a nossa separação. Negou | |
| que fosse separação; era só alguma ausencia, por causa dos estudos; só | |
| os primeiros dias. Em pouco tempo eu me acostumaria aos companheiros e | |
| aos mestres, e acabaria gostando de viver com elles. | |
| --Eu só gosto de mamãe. | |
| Não houve calculo nesta palavra, mas estimei dizel-a, por fazer crer | |
| que ella era a minha unica affeição; desviava as suspeitas de cima | |
| de Capitú. Quantas intenções viciosas ha assim que embarcam, a meio | |
| caminho, n'uma phrase innocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a | |
| mentira é, muita vez, tão involuntaria como a transpiração. Por outro | |
| lado, leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas de cima de | |
| Capitú, quando havia chamado minha mãe justamente para confirmal-as; | |
| mas as contradicções são deste mundo. A verdade é que minha mãe era | |
| candida como a primeira aurora, anterior ao primeiro peccado; nem | |
| por simples intuição era capaz de deduzir uma cousa de outra, isto | |
| é, não concluiria da minha repentina opposição que eu andasse em | |
| segredinhos com Capitú, como lhe dissera José Dias. Calou-se durante | |
| alguns instantes; depois replicou-me sem imposição nem autoridade, o | |
| que me veiu animando á resistencia. Dahi o falar-lhe na vocação que se | |
| discutira naquella tarde, e que eu confessei não sentir em mim. | |
| --Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ella; não te lembras que | |
| até pedias para ir ver sair os seminaristas de S. José, com as suas | |
| batinas? Em casa, quando José Dias te chamava Reverendissimo, tu rias | |
| com tanto gosto! Como é que agora...? Não creio, não, Bentinho. E | |
| depois... Vocação? Mas a vocação vem com o costume, continuou repetindo | |
| as reflexões que ouvira ao meu professor de latim. | |
| Como eu buscasse contestal-a, reprehendeu-me sem aspereza, mas com | |
| alguma força, e eu tornei ao filho submisso que era. Depois, ainda | |
| falou gravemente e longamente sobre a promessa que fizera; não me disse | |
| as circumstancias, nem a occasião, nem os motivos della, cousas que só | |
| vim a saber mais tarde. Affirmou o principal, isto é, que a havia do | |
| cumprir, em pagamento a Deus. | |
| --Nosso Senhor me acudiu, salvando a tua existencia, não lhe hei de | |
| mentir nem faltar, Bentinho; são cousas que não se fazem sem peccado, e | |
| Deus que é grande e poderoso, não me deixaria assim, não, Bentinho; eu | |
| sei que seria castigada e bem castigada. Ser padre é bom e santo; você | |
| conhece muitos, como o padre Cabral, que vive tao feliz com a irmã; um | |
| tio meu tambem foi padre, e escapou de ser bispo, dizem... Deixa de | |
| manha, Bentinho. | |
| Creio que os olhos que lhe deitei foram tão queixosos, que ella emendou | |
| logo a palavra; manha, não, não podia ser manha, sabia muito bem que | |
| eu era amigo della, e não seria capaz de fingir um sentimento que não | |
| tivesse. Molleza é o que queria dizer, que me deixasse de molleza, que | |
| me fizesse homem e obedecesse ao que cumpria, em beneficio della e para | |
| bem da minha alma. Todas essas cousas e outras foram ditas um pouco | |
| atropelladamente, e a voz não lhe saia clara, mas velada e esganada. | |
| Vi que a emoção della era outra vez grande, mas não recuava dos seus | |
| propositos, e aventurei-me a perguntar-lhe: | |
| --E se mamãe pedisse a Deus que a dispensasse da promessa? | |
| --Não, não peço. Estás tonto, Bentinho? E como havia de saber que Deus | |
| me dispensava? | |
| --Talvez em sonho; eu sonho as vezes com anjos e santos. | |
| --Tambem eu, num filho; mas é inútil... Vamos, é tarde; vamos para a | |
| sala. Está entendido: no primeiro ou no segundo mez do anno que vem, | |
| irás para o seminario. O que eu quero é que saibas bem os livros que | |
| estás estudando; é bonito, não só para ti, como para o padre Cabral. No | |
| seminario ha interesse em conhecer-te, porque o padre Cabral fala de ti | |
| com enthusiasmo. | |
| Caminhou para a porta, saimos ambos. Antes de sair, voltou-se para mim, | |
| e quasi a vi saltar-me ao collo e dizer-me que não seria padre. Este | |
| era já o seu desejo intimo, á proporção que se approximava o tempo. | |
| Quizera um modo de pagar a divida contrahida, outra moeda, que valesse | |
| tanto ou mais, e não achava nenhuma. | |
| XLII | |
| Capitú reflectindo. | |
| No dia seguinte fui á casa visinha, logo que pude. Capitú despedia-se | |
| de tres amigas que tinham ido visital-a, Paula e Sandia, companheiras | |
| de collegio, aquella de quinze, esta de desessete annos, a primeira | |
| filha de um medico, a segunda de um commerciante de objectos | |
| americanos. Estava abatida, trazia um lenço atado na cabeça; a mãe | |
| contou-me que fora excesso de leitura na vespera, antes e depois | |
| do chá, na sala e na cama, até muito depois da meia noite, e com | |
| lamparina... | |
| --Se eu accendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa. | |
| E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor | |
| atal-o, mas Capitú respondeu que não era preciso, estava boa. | |
| Ficámos sós na sala; Capitú continuou a narração da mãe, accrescentando | |
| que passara mal por causa do que ouvira em minha casa. Tambem eu lhe | |
| contei o que se déra commigo, a entrevista com minha mãe, as minhas | |
| supplicas, as lagrimas della, e por fim as ultimas respostas decisivas: | |
| dentro de dous ou tres mezes iria para o seminario. Que fariamos agora? | |
| Capitú ouvia-me com attenção sofrega, depois sombria; quando acabei, | |
| respirava a custo, como prestes a estalar de colera, mas conteve-se. | |
| Ha tanto tempo que isto succedeu que não posso dizer com segurança se | |
| chorou devéras, ou se sómente enxugou os olhos; cuido que os enxugou | |
| sómente. Vendo-lhe o gesto, peguei-lhe na mão para animal-a, mas tambem | |
| eu precisava ser animado. Caimos no canapé, e ficámos a olhar para o | |
| ar. Minto; ella olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... | |
| Mas eu creio que Capitú olhava para dentro de si mesma, emquanto que | |
| eu fitava devéras o chão, o roido das fendas, duas moscas andando e um | |
| pé de cadeira lascado. Era pouco, mas distraía-me da afflicção. Quando | |
| tornei a olhar para Capitú, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo | |
| que a sacudi brandamente. Capitú tornou cá para fora e pediu-me que | |
| outra vez lhe contasse o que se passára com minha mãe. Satisfil-a, | |
| attenuando o texto desta vez, para não amofinal-a. Não me chames | |
| dissimulado, chama-me compassivo; é certo que receiava perder Capitú, | |
| se lhe morressem as esperanças todas, mas doia-me vel-a padecer. Agora, | |
| a verdade ultima, a verdade das verdades, é que já me arrependia de | |
| haver falado a minha mãe, antes de qualquer trabalho effectivo por | |
| parte de José Dias; examinando bem, não quizera ter ouvido um desengano | |
| que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitú reflectia, reflectia, | |
| reflectia... | |
| XLIII | |
| Você tem medo? | |
| De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e | |
| perguntou-me se tinha medo. | |
| --Medo? | |
| --Sim, pergunto se você tem medo. | |
| --Medo de que? | |
| --Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, do andar, de trabalhar... | |
| Não entendi. Se ella me tem dito simplesmente: «Vamos embora!» póde | |
| ser que eu obedecesse ou não; em todo caso, entenderia. Mas aquella | |
| pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era. | |
| --Mas... não entendo. De apanhar? | |
| --Sim. | |
| --Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada? | |
| Capitú fez um gesto de impaciencia. Os olhos de ressaca não se mexiam | |
| e pareciam crescer. Sem saber de mim, e, não querendo interrogal-a | |
| novamente, entrei a cogitar d'onde me viriam pancadas, e porque, e | |
| tambem porque é que seria preso, e quem é que me havia de prender. | |
| Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. | |
| Tambem vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correcção. | |
| Todas essas bellas instituições sociaes me envolviam no seu mysterio, | |
| sem que os olhos de ressaca de Capitú deixassem de crescer para mim, | |
| a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitú foi | |
| não deixal-os crescer infinitamente, antes diminuir até ás dimensões | |
| normaes, e dar-lhes o movimento do costume. Capitú tornou ao que era, | |
| disse-me que estava brincando, não precisava affligir-me, e, com um | |
| gesto cheio de graça, bateu-me na casa sorrindo, e disse: | |
| --Medroso! | |
| --Eu? Mas... | |
| --Não é nada, Bentinho. Pois quem é que ha de dar pancada ou prender | |
| você? Desculpe que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e... | |
| --Não, Capitú; você não está brincando; nesta occasião, nenhum de nós | |
| tom vontade de brincar. | |
| --Tem razão, foi só maluquice; até logo. | |
| --Como até logo? | |
| --Está-me voltando a dôr do cabeça; vou botar uma rodella de limão nas | |
| fontes. | |
| Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida, | |
| acompanhou-me ao quintal para se despedir de mim; mas, ainda ahi nos | |
| detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava, | |
| o ceu estava coberto. Capitú falou novamente da nossa separação, como | |
| de um facto certo e definitivo, por mais que eu, receioso disso mesmo, | |
| buscasse agora razões para animal-a. Capitú, quando não falava, riscava | |
| no chão, com um pedaço cie taquara, narizes e perfis. Desde que se | |
| mettera a desenhar, era uma das suas diversões; tudo lhe servia de | |
| papel e lapis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ella no | |
| muro, quiz fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou | |
| não me attendeu. | |
| XLIV | |
| O primeiro filho. | |
| --Dê cá, deixe escrever uma cousa. | |
| Capitú olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição | |
| de José Dias, obliquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os | |
| olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me: | |
| --Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; ha de | |
| responder com o coração na mão. | |
| --Que é? Diga. | |
| --Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que | |
| escolhia? | |
| --Eu? | |
| Fez-me signal que sim. | |
| --Eu escolhia... mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me | |
| perguntar isso. | |
| --Pois, sim, mas eu pergunto. Supponha você que está no seminario e | |
| recebe a noticia de que eu vou morrer... | |
| --Não diga isso! | |
| --... Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não | |
| quizer que você venha, diga-me, você vem? | |
| --Venho. | |
| --Contra a ordem de sua mãe? | |
| --Contra a ordem de mamãe. | |
| --Você deixa seminario, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer? | |
| --Não fale em morrer, Capitú! | |
| Capitú teve um risinho descorado e incredulo, e com a taquara escreveu | |
| uma palavra no chão; inclinei-me e li: _mentiroso._ | |
| Era tão extranho tudo aquillo, que não achei resposta. Não atinava com | |
| a razão do escripto, como não atinava com a do falado. Se me acudisse | |
| alli uma injuria grande ou pequena, é possivel que a escrevesse tambem, | |
| com a mesma taquara, mas não me lembrava nada. Tinha a cabeça vazia. | |
| Ao mesmo tempo tomei-me de receio de que alguem nos pudesse ouvir ou | |
| ler. Quem, se eramos sós? D. Fortunata chegara uma vez á porta da casa, | |
| mas entrou logo depois. A solidão era completa. Lembra-me que umas | |
| andorinhas passaram por cima do quintal e foram para os lados do morro | |
| de Santa Theresa; ninguem mais. Ao longe, vozes vagas e confusas, na | |
| rua um tropel de bestas, do lado da casa o chilrear dos passarinhos | |
| do Padua. Nada mais, ou sómente este phenomeno curioso, que o nome | |
| escripto por ella, não só me espiava do chão com gesto escarninho, | |
| mas até me pareceu que repercutia no ar. Tive então uma ideia ruim; | |
| disse-lhe que, afinal de contas, a vida de padre não era má, e eu podia | |
| acceital-a sem grande pena. Como desforço, era pueril; mas eu sentia a | |
| secreta esperança de vel-a atirar-se a mim lavada em lagrimas. Capitú | |
| limitou-se a arregalar muito os olhos, e acabou por dizer: | |
| --Padre é bom, não ha duvida; melhor que padre só conego, por causa das | |
| meias roxas. O roxo é côr muito bonita. Pensando bem, é melhor conego. | |
| --Mas não se póde ser conego sem ser primeiramente padre, disse-lhe eu | |
| mordendo os beiços. | |
| --Bem; comece pelas meias pretas, depois virão as roxas. O que eu não | |
| quero perder é a sua missa nova; avise-me a tempo para fazer um vestido | |
| á moda, saia balão e babados grandes... Mas talvez nesse tempo a moda | |
| seja outra. A egreja ha de ser grande, Carmo ou S. Francisco. | |
| --Ou Candelaria. | |
| --Candelaria tambem. Qualquer sorve, comtanto que eu ouça a missa nova. | |
| Hei de fazer um figurão. Muita gente ha de perguntar: «Quem é aquella | |
| moça faceira que alli está com um vestido tão bonito?»--«Aquella é D. | |
| Capitolina, uma moça que morou na rua de Matacavallos...» | |
| --Que morou? Você vae mudar-se? | |
| --Quem sabe onde é que ha do morar amanhã? disse ella com um tom leve | |
| de melancolia; mas tornando logo ao sarcasmo: E você no altar, mettido | |
| na alva, com a capa de ouro por cima, cantando... _Pater noster..._ | |
| Ah! como eu sinto não ser um poeta romantico para dizer que isto era um | |
| duello de ironias! Contaria os meus botes e os della, a graça de um e a | |
| promptidão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu | |
| golpe final que foi este: | |
| --Pois, sim, Capitú, você ouvirá a minha missa nova, mas com uma | |
| condição. | |
| Ao que ella respondeu: | |
| --Vossa Reverendíssima póde falar. | |
| --Promette uma cousa? | |
| --Que é? | |
| --Diga se promette. | |
| --Não sabendo o que é, não prometto. | |
| --A falar verdade são duas cousas, continuei eu, por haver-me acudido | |
| outra ideia. | |
| --Duas? Diga quaes são. | |
| --A primeira é que só se ha de confessar commigo, para eu lhe dar a | |
| penitencia e a absolvição. A segunda é que... | |
| --A primeira está promettida, disse ella vendo-me hesitar, e | |
| accrescentou que esperava a segunda. | |
| Palavra que me custou, e antes não me chegasse a sair da boca; não | |
| ouviria o que ouvi, o não escreveria aqui uma cousa que vae talvez | |
| achar incredulos. | |
| --A segunda... sim... é que... Promette-me que seja eu o padre que case | |
| você? | |
| Que me case? disso ella um tanto commovida. | |
| Logo depois fez descair os labios, e abanou a cabeça. | |
| --Não, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo; você não vae ser | |
| padre já amanhã, leva muitos annos... Olhe, prometto outra cousa; | |
| prometto que ha de baptisar o meu primeiro filho. | |
| XLV | |
| Abane a cabeça, leitor. | |
| Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a | |
| deitar fóra este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo | |
| é possivel. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar | |
| do livro e que o abra na mesma pagina, sem crer por isso na veracidade | |
| do autor. Todavia, não ha nada mais exacto. Foi assim mesmo que Capitú | |
| falou, com taes palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se | |
| fosse a primeira boneca. | |
| Quanto ao meu espanto, se tambem foi grande, veiu de mistura com uma | |
| sensação exquisita. Percorreu-me um fluido. Aquella ameaça de um | |
| primeiro filho, o primeiro filho de Capitú, o casamento della com | |
| outro, portanto, a separação absoluta, a perda, a anniquilação, tudo | |
| isso produzia um tal effeito, que não achei palavra nem gesto; fiquei | |
| estupido. Capitú sorria; eu via o primeiro filho brincando no chão... | |
| XLVI | |
| As pazes. | |
| As pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro | |
| a minha gloria, e diria que as negociações partiram de mim; mas não, | |
| foi ella que as iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse | |
| cabisbaixo, ella abaixou tambem a cabeça, mas voltando os olhos para | |
| cima afim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quiz levantar-me | |
| para ir embora, mas nem me levantei, nem sei se iria. Capitú fitou-me | |
| uns olhos tao ternos, e a posição os fazia tão supplices, que me deixei | |
| ficar, passei-lhe o braço pela cintura, ella pegou-me na ponta dos | |
| dedos, e... | |
| Outra vez D. Fortunata appareceu á porta da casa; não sei para quê, | |
| se nem me deixou tempo de puxar o braço; desappareceu logo. Podia ser | |
| um simples descargo de consciencia, uma cerimonia, como as rezas de | |
| obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel; a não ser que fosse | |
| para certificar aos proprios olhos a realidade que o coração lhe | |
| dizia... | |
| Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da filha, | |
| e foi assim que nos pacificámos. O bonito é que cada um de nós queria | |
| agora as culpas para si, e pediamos reciprocamente perdão. Capitú | |
| allegava a insomnia, a dôr de cabeça, o abatimento do espirito, e | |
| finalmente «os seus calundús.» Eu, que era muito chorão por esse tempo, | |
| sentia os olhos molhados... Era amor puro, era effeito dos padecimentos | |
| da amiguinha, era a ternura da reconciliação. | |
| XLVII | |
| «A senhora saiu.» | |
| --Está bom, acabou, disso eu finalmente; mas, explique-me só uma cousa, | |
| porque é que você me perguntou se eu tinha medo de apanhar? | |
| --Não foi por nada, respondeu Capitú, depois de alguma hesitação... | |
| Para que bolir nisso? | |
| --Diga sempre. Foi por causa do seminario? | |
| --Foi; ouvi dizer que lá dão pancada... Não? Eu tambem não creio. | |
| A explicação agradou-me; não tinha outra. Se, como penso, Capitú | |
| não disse a verdade, força é reconhecer que não podia dizel-a, e a | |
| mentira é dessas creadas que se dão pressa em responder ás visitas | |
| que «a senhora saiu», quando a senhora não quer falar a ninguem. Ha | |
| nessa cumplicidade um gosto particular; o peccado em commum eguala | |
| por instantes a condição das pessoas, não contando o prazer que dá a | |
| cara das visitas enganadas, e as costas com que ellas descem... A | |
| verdade não saiu, ficou em casa, no coração de Capitú, cochilando o | |
| seu arrependimento. E eu não desci triste nem zangado; achei a creada | |
| galante, appetecivel, melhor que a ama. | |
| As andorinhas vinham agora em sentido contrario, ou não seriam as | |
| mesmas. Nós é que eramos os mesmos; alli ficámos sommando as nossas | |
| illusões, os nossos temores, começando já a sommar as nossas saudades. | |
| XLVIII | |
| Juramento do poço. | |
| --Não! exclamei de repente. | |
| --Não quê? | |
| Tinha havido alguns minutos de silencio, durante os quaes reflecti | |
| muito e acabei por uma ideia; o tom da exclamação, porém, foi tão alto | |
| que espantou a minha visinha. | |
| --Não ha de ser assim, continuei. Dizem que não estamos em edade de | |
| casar, que somos creanças, creançolas,--já ouvi dizer creançolas. Bem; | |
| mas dous ou tres annos passam depressa. Você jura uma cousa? Jura que | |
| só ha de casar commigo? | |
| Capitú não hesitou em jurar, e até lhe vi as faces vermelhas de prazer. | |
| Jurou duas vezes e uma terceira: | |
| --Ainda que você case com outra, cumprirei o meu juramento, não casando | |
| nunca. | |
| --Que eu case com outra? | |
| --Tudo póde ser, Bentinho. Você póde achar outra moça que lhe queira, | |
| apaixonar-se por ella e casar. Quem sou eu para você lembrar-se de mim | |
| nessa occasião? | |
| --Mas eu tambem juro! Juro, Capitú, juro por Deus Nosso Senhor que só | |
| me casarei com você. Basta isto? | |
| --Devia bastar, disse ella; eu não me atrevo a pedir mais. Sim, você | |
| jura... Mas juremos por outro modo; juremos que nos havemos de casar um | |
| com outro, haja o que houver. | |
| Comprehendeis a differença; era mais que a eleição do conjuge, era a | |
| affirmação do matrimonio. A cabeça da minha amiga sabia pensar claro e | |
| depressa. Realmente, a formula anterior era limitada, apenas exclusiva. | |
| Podiamos acabar solteirões, como o sol e a lua, sem mentir ao juramento | |
| do poço. Esta formula era melhor, e tinha a vantagem de me fortalecer | |
| o coração contra a investidura ecclesiastica. Jurámos pela segunda | |
| formula, e ficámos tão felizes que todo receio de perigo desappareceu. | |
| Eramos religiosos, tínhamos o ceu por testemunha. Eu nem já temia o | |
| seminario. | |
| **--Se teimarem muito, irei; mas faço de conta que é um collegio | |
| qualquer; não tomo ordens. | |
| Capitú temia a nossa separação, mas acabou acceitando este alvitre, que | |
| era o melhor. Não affligiamos minha mãe, e o tempo correria até o ponto | |
| em que o casamento pudesse fazer-se. Ao contrario, qualquer resistencia | |
| ao seminario confirmaria a denuncia de José Dias. Esta reflexão não foi | |
| minha, mas della. | |
| XLIX | |
| Uma vela aos sabbados. | |
| Eis aqui como, após tantas canceiras, tocavamos o porto a que nos | |
| deviamos ter abrigado logo. Não nos censures, piloto de má sorte, | |
| não se navegam corações como os outros mares deste mundo. Estavamos | |
| contentes, entramos a falar do futuro. Eu promettia a minha esposa uma | |
| vida socegada e bella, na roça ou fóra da cidade. Viriamos aqui uma vez | |
| por anno. Se fosse em arrabalde, seria longe, onde ninguem nos fosse | |
| aborrecer. A casa, na minha opinião, não devia ser grande nem pequena, | |
| um meio termo; plantei-lhe flôres, escolhi moveis, uma sege e um | |
| oratorio. Sim, haviamos de ter um oratorio bonito, alto, de jacarandá, | |
| com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Demorei-me mais nisto que | |
| no resto, em parte porque eramos religiosos, em parte para compensar a | |
| batina que eu ia deitar as ortigas: mas ainda restava uma parte que | |
| attribuo ao intuito secreto e inconsciente de captara protecção do ceu. | |
| Haviamos de accender uma vela aos sabbabos... | |
| L | |
| Um meio termo. | |
| Mezes depois fui para o seminario de S. José. Se eu pudesse contar as | |
| lagrimas que chorei na vespera e na manhã, sommaria mais que todas | |
| as vertidas desde Adão e Eva. Ha nisto alguma exageração; mas é bom | |
| ser emphatico, uma ou outra vez, para compensar este escrupulo de | |
| exactidão que me afflige. Entretanto, se eu me ativer só á lembrança da | |
| sensação, não fico longe da verdade; aos quinze annos, tudo é infinito. | |
| Realmente, por mais preparado que estivesse, padeci muito. Minha mãe | |
| tambem padeceu, mas soffria com alma e coração; demais, o padre Cabral | |
| achára um meio termo, experimentar-me a vocação; se no fim de dous | |
| annos, eu não revelasse vocação ecclesiastica, seguiria outra carreira. | |
| --As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Supponha que | |
| Nosso Senhor nega disposição a seu filho, e que o costume do seminario | |
| não lhe dá o gosto que me concedeu a mim, é que a vontade divina é | |
| outra. A senhora não podia pôr em seu filho, antes de nascido, uma | |
| vocação que Nosso Senhor lhe recusou... | |
| Era uma concessão do padre. Dava a minha mãe um perdão antecipado, | |
| fazendo vir do credor a relevação da divida. Os olhos della brilharam, | |
| mas a bocca disse que não. José Dias, não tendo alcançado ir commigo | |
| para a Europa, agarrou-se ao mais proximo, e apoiou o «alvitre do Sr. | |
| protonotario»; só lhe parecia que um anno era bastante. | |
| --Estou certo, disse elle, piscando-me o olho, que dentro de um anno a | |
| vocação ecclesiastica do nosso Bentinho se manifesta clara e decisiva. | |
| Ha de dar um padre de mão cheia. Tambem se não vier em um anno... | |
| E a mim, mais tarde, em particular: | |
| --Vá por um anno; um anno passa depressa. Se não sentir gosto nenhum, | |
| é que Deus não quer, como diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o | |
| melhor remedio é a Europa. | |
| Capitú deu-me egual conselho, quando minha mãe lhe annunciou a minha | |
| ida definitiva para o seminario: | |
| --Minha filha, você vae perder o seu companheiro de creança... | |
| Fez-lhe tão bem este tratamento de _filha_ (era a primeira vez que | |
| minha mãe lh'o dava), que nem teve tempo de ficar triste; beijou-lhe | |
| a mão, e disse-lhe que já sabia disso por mim mesmo. Em particular | |
| animou-me a supportar tudo com paciencia; no fim de um anno as cousas | |
| estariam mudadas, e um anno andava depressa. Não foi ainda a nossa | |
| despedida; esta fez-se na vespera, por um modo que pede capitulo | |
| especial. O que unicamente digo aqui é que, ao passo que nos prendiamos | |
| um ao outro, ella ia prendendo minha mãe, fez-se mais assidua e terna, | |
| vivia ao pé della, com os olhos nella. Minha mãe era de natural | |
| sympathico, e egualmente sensivel; tanto se doía como se aprazia de | |
| qualquer cousa. Entrou a achar em Capitú uma porção de graças novas, de | |
| dotes finos e raros; deu-lhe um anel dos seus e algumas galanterias. | |
| Não consentiu em photographar-se, como a pequena lhe pedia, para lhe | |
| dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos vinte e cinco annos, | |
| e, depois de algumas hesitações, resolveu dar-lh'a. Os olhos de Capitú, | |
| quando recebeu o mimo, não se descrevem; não eram obliquos, nem de | |
| ressaca, eram direitos, claros, lucidos. Beijou o retrato com paixão, | |
| minha mãe fez-lhe a mesma cousa a ella. Tudo isto me lembra a nossa | |
| despedida. | |
| LI | |
| Entre luz e fusco. | |
| Entre luz e fusco, tudo ha de ser breve como esse instante. Nem durou | |
| muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em casa della, na sala | |
| de visitas, antes do accender das velas; ahi é que nos despedimos | |
| de uma vez. Jurámos novamente que haviamos de casar um com outro, e | |
| não foi só o aperto de mão que sellou o contracto, como no quintal, | |
| foi a conjuncção das nossas boccas amorosas... Talvez risque isto na | |
| impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar, fica. E | |
| desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento | |
| divino quer é que não juremos _em vão_ pelo santo nome de Deus. Eu | |
| não ia mentir ao seminario, uma vez que levava um contracto feito | |
| no proprio cartorio do ceu. Quanto ao sello, Deus, como fez os mãos | |
| limpas, assim fez os labios limpos, e a malicia está antes na tua | |
| cabeça perversa que na daquelle casal de adolescentes... Oh! minha | |
| doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei | |
| na aula de S. José, a buscar de apparencia a investidura sacerdotal, e | |
| antes della a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu. | |
| LII | |
| O velho Padua. | |
| Ja agora conto tambem os adeuses do velho Padua. Logo cedo veiu á nossa | |
| casa. Minha mãe disse-lhe que fosse falar-me ao quarto. | |
| --Dá licença? perguntou mettendo a cabeça pela porta. | |
| Fui apertar-lhe a mão; elle abraçou-me com ternura. | |
| --Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam | |
| muitas saudades. Todos nós estimamos muito o senhor, como merece. Se | |
| lhe disserem outra cousa, não acredite. São intrigas. Tambem eu, quando | |
| me casei, fui victima de intrigas; desfizeram-se. Deus é grande e | |
| descobre a verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio,--cousa que | |
| eu, por esta luz que me allumia, não desejo, porque são boas pessoas, | |
| excedentes pessoas, e eu sou grato ás finezas recebidas... Não, eu não | |
| sou como outros, certos parasitas, vindos de fóra para desunião das | |
| familias, aduladores baixos, não; eu sou de outra especie; não vivo | |
| papando os jantares nem morando em casa alheia... Emfim, são os mais | |
| felizes! | |
| --Porque falará assim? pensei. Naturalmente sabe que José Dias diz mal | |
| delle. | |
| --Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, póde | |
| contar com a nossa companhia. Não é sufficiente em importancia, mas a | |
| affeição é immensa, creia. Padre que seja, a nossa casa está ás suas | |
| ordens. Quero só que me não esqueça; não esqueça o velho Padua... | |
| Suspirou e continuou: | |
| --Não esqueça o seu velho Padua, e, se tem algum trapinho que me deixe | |
| em lembrança, um caderno latino, qualquer cousa, um botão de collete, | |
| cousa que já lhe não preste para nada. O valer é a lembrança. | |
| Tive um sobresalto. Havia embrulhado em um papel um cacho dos meus | |
| cabellos, tão grandes e tão bonitos, cortados na vespera. A intenção | |
| era leval-os a Capitú, ao sair; mas tive ideia de dal-o ao pae, a filha | |
| saberia lomal-o e guardal-o. Peguei do embrulho e dei-lh'o. | |
| --Aqui está, guarde. | |
| --Um cachinho dos seus cabellos! exclamou Padua abrindo e fechando o | |
| embrulho. Oh! obrigado! obrigado por mim e pela minha gente! Vou dai-o | |
| á velha, para guardal-o, ou á pequena, que é mais cuidadosa que a mãe. | |
| Que lindos que são! Como é que se corta uma belleza destas? Dê cá um | |
| abraço! outro! mais outro! adeus! | |
| Tinha os olhos humidos devéras; levava a cara dos desenganados, como | |
| quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e | |
| vê sair branco o maldito numero,--um numero tão bonito! | |
| LIII | |
| A caminho! | |
| Fui para o seminario. Poupa-me as outras despedidas. Minha mãe | |
| apertava-me ao peito. Prima Justina suspirava. Talvez chorasse mal ou | |
| nada. Ha pessoas a quem as lagrimas não acodem logo nem nunca; diz-se | |
| que padecem mais que as outras. Prima Justina disfarçava naturalmente | |
| os seus padecimentos intimos, emendando os descuidos de minha mãe, | |
| fazendo-me recommendações, dando ordens. Tio Cosme, quando eu lhe | |
| beijei a mão em despedida, disse-me rindo: | |
| --Anda lá, rapaz, volta-me papa! | |
| José Dias, composto e grave, não dizia nada a principio; tinhamos | |
| falado na vespera, no quarto delle, onde fui ver se era ainda possivel | |
| evitar o seminario. Já não era, mas deu-me esperanças e principalmente | |
| animou-me muito. Antes de um anno estariamos a bordo. Como eu achasse | |
| muito breve, explicou-se. | |
| --Dizem que não é bom tempo de atravessar o Atlantico, vou indagar; se | |
| não fôr, iremos em Março ou Abril. | |
| --Posso estudar medicina aqui mesmo. | |
| José Dias correu os dedos pelos suspensorios com um gesto de | |
| impaciencia, apertou os beiços, até que formalmente rejeitou o alvitre. | |
| --Não duvidaria approvar a ideia, disse elle, se na Escola de Medicina | |
| não ensinassem, exclusivamente, a podridão allopatha. A allopathia | |
| é o erro dos seculos, e vae morrer; é o assassinato, é a mentira, é | |
| a illusão. Se lhe disserem que póde apprender na Escola de Medicina | |
| aquella parte da sciencia commum a todos os systemas, é verdade; a | |
| allopathia é erro na therapeutica. Physiologia, anatomia, pathologia, | |
| não são allopathicas nem homeopathicas, mas é melhor apprender logo | |
| tudo de uma vez, por livros e por lingua de homens cultores da | |
| verdade... | |
| Assim falára na vespera e no quarto. Agora não dizia nada, ou proferia | |
| algum aphorismo sobre a religião e a familia; lembro-me deste: | |
| «Dividil-o com Deus é ainda possuil-o.» Quando minha mãe me deu o | |
| ultimo beijo: «Quadro amantissimo!» suspirou elle. Era manhã de um | |
| lindo dia. Os moleques cochichavam; as escravas tomavam a benção: | |
| «Benção, nhõ Bentinho! não se esqueça de sua Joanna! Sua Miquelina fica | |
| rezando por vosmecê!» Na rua José Dias insistiu nas esperanças: | |
| --Aguente um anno; até lá tudo estará arranjado. | |
| LIV | |
| Panegyrico de Santa Monica. | |
| No seminario... Ah! não vou contar o seminario, nem me bastaria a isso | |
| um capitulo. Não, senhor meu amigo; algum dia, sim, é possivel que | |
| componha um abreviado do que alli vi e vivi, das pessoas que tratei, | |
| dos costumes, de todo o resto. Esta sarna de escrever, quando pega aos | |
| cincoenta annos, não despega mais. Na mocidade é possivel curar-se um | |
| homem della; e, sem ir mais longe, aqui mesmo no seminario tive um | |
| companheiro que compoz versos, a maneira dos de Junqueira Freire, cujo | |
| livro de frade poeta era recente. Ordenou-se: annos depois encontrei-o | |
| no còro de S. Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos. | |
| --Que versos? perguntou meio espantado. | |
| --Os seus. Pois não se lembra que no seminario... | |
| --Ah! sorriu elle. | |
| Sorriu, e continuando a procurar n'um livro aberto a hora em que tinha | |
| do cantar no dia seguinte, confessou-me que não fizera mais versos | |
| depois de ordenado. Foram cocegas da mocidade; coçou-se, passou, estava | |
| bom. E falou-me em prosa de uma infinidade de cousas do dia, a vida | |
| cara, um sermão do padre X... uma vigairaria mineira... | |
| Contrario a isso foi um seminarista que não seguiu a carreira. | |
| Chamava-se... Não é preciso dizer o nome; baste o caso. Tinha composto | |
| um _Panegyrico de Santa Monica_, elogiado por algumas pessoas e então | |
| lido entre os seminaristas. Alcançou licença de imprimil-o, o dedicou-o | |
| a Santo Agostinho. Tudo isso é historia velha; o que é mais moço é que | |
| um dia, em 1882, indo ver certo negocio em repartição de marinha, alli | |
| dei com este meu collega, feito chefe de uma secção administrativa. | |
| Deixára seminario, deixára lettras, casára e esquecera tudo, menos | |
| o _Panegyrico de Santa Monica_, umas vinte e nove paginas, que veiu | |
| distribuindo pela vida fóra. Como eu precisasse de algumas informações, | |
| fui pedir-lh'as, e seria impossivel achar melhor nem mais prompta | |
| vontade; deu-me tudo, claro, certo, copioso. Naturalmente conversamos | |
| do passado, memorias pessoaes, casos de estudo, incidentes de nada, | |
| um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada saiu cá fóra, e | |
| rimos juntos, e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do nosso | |
| velho seminario. Ou porque eram delle, ou porque eramos então moços, | |
| as recordações traziam tal poder de felicidade que, se alguma sombra | |
| contraria houve então, não appareceu agora. Elle confessou-me que | |
| perdera de vista todos os companheiros do seminario. | |
| --Tambem eu, quasi todos; uma vez ordenados, voltaram naturalmente ás | |
| suas provincias, e os daqui tomaram vigairarias fóra. | |
| --Bom tempo! suspirou elle. | |
| E, após alguma reflexão, fitando em mim uns olhos murchos e teimosos, | |
| perguntou-me: | |
| --Conservou o meu _Panegyrico?_ | |
| Não achei que dizer; tentei mover os beiços, mas não tinha palavra; | |
| afinal, perguntei: | |
| --Panegyrico? Que panegyrico? | |
| --O meu _Panegyrico de Santa Monica._ | |
| Não me lembrou logo, mas a explicação devia bastar; e depois de | |
| alguns instantes de pesquiza mental, respondi que por muito tempo o | |
| conservára, mas as mudanças, as viagens... | |
| --Hei de levar-lhe um exemplar. | |
| Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto, um | |
| velho folheto de vinte e seis annos, encardido, manchado do tempo, mas | |
| sem lacuna, e com uma dedicatoria manuscripta e respeitosa. | |
| --E o penultimo exemplar, disse-me; agora só me resta um, que não posso | |
| dar a ninguem. | |
| E como me visse folhear o opusculo: | |
| --Veja se lhe lembra algum pedaço, disse-me. | |
| Vinte e seis annos de intervallo fazem morrer amizades mais estreitas e | |
| assiduas, mas era cortezia, era quasi caridade recordar alguma lauda; | |
| li uma dellas, accentuando certas phrases para lhe dar a impressão de | |
| que achavam echo em minha memoria. Concordou que fossem bellas, mas | |
| preferia outras, e apontou-as. | |
| --Recorda-se bem? | |
| --Perfeitamente. _Panegyrico de Santa Monica!_ Como isto me faz | |
| remontar os annos da minha mocidade! Nunca me esqueceu o seminario, | |
| creia. Os annos passam, os acontecimentos vêm uns sobre outros, e as | |
| sensações tambem, e vieram amizades novas, que tambem se foram depois, | |
| como é lei da vida... Pois, meu caro collega, nada fez apagar aquelle | |
| tempo da nossa convivencia, os padres, as licções, os recreios... os | |
| nossos recreios, lembra-se? o padre Lopes, oh! o padre Lopes... | |
| Elle, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia, | |
| mas só me disse uma palavra, e ainda assim depois de algum tempo de | |
| silencio, recolhendo os olhos e um suspiro! | |
| --Tem agradado muito este meu _Panegyrico!_ | |
| LV | |
| Um soneto. | |
| Dita a palavra, apertou-me as mãos com as forças todas de um vasto | |
| agradecimento, despediu-se e saiu. Fiquei só com o _Panegyrico_, e | |
| o que as folhas delle me lembraram foi tal que merece um capitulo | |
| ou mais. Antes, porém, e porque tambem eu tive o meu _Panegyrico_, | |
| contarei a historia de um soneto que nunca fiz; era no tempo do | |
| seminario, e o primeiro verso é o que ides ler: | |
| Oh! flòr do ceu! oh! flòr candida e pura! | |
| Como e porque me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim, | |
| estando eu na cama, como uma exclamação solta, e, ao notar que tinha | |
| a medida de verso, pensei em compor com elle alguma cousa, um soneto. | |
| A insonmia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa | |
| hora ou duas; as cocegas pediam-me unhas, e eu coçava-me com alma. | |
| Não escolhi logo, logo o soneto; a principio cuidei de outra fórma, e | |
| tanto de rima como de verso solto, mas afinal ative-me ao soneto. Era | |
| um poema breve e prestadio. Quanto á ideia, o primeiro verso não era | |
| ainda uma ideia, era uma exclamação; a ideia viria depois. Assim na | |
| cama, envolvido no lençol, tratei de poetar. Tinha o alvoroço da mãe | |
| que sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir com | |
| aquelle monge da Bahia, pouco antes revelado, e então na moda; eu, | |
| seminarista, diria em verso as minhas tristezas, como elle dissera as | |
| suas no claustro. Decorei bem o verso, e repetia-o em voz baixa, aos | |
| lençóes; francamente, achava-o bonito, e ainda agora não me parece máu: | |
| Oh! flòr do ceu! oh! flòr candida e pura! | |
| Quem era a flòr? Capitú, naturalmente; mas podia ser a virtude, a | |
| poesia, a religião, qualquer outro conceito a que coubesse a metaphora | |
| da flòr, e flòr do ceu. Aguardei o resto, recitando sempre o verso, | |
| e deitado ora sobre o lado direito, ora sobre o esquerdo; atinai | |
| deixei-me estar de costas, com os olhos no tecto, mas nem assim vinha | |
| mais nada. Então adverti que os sonetos mais gabados eram os que | |
| concluiam com chave de ouro, isto é, um desses versos capitaes no | |
| sentido e na fórma. Pensei em forjar uma de taes chaves, considerando | |
| que o verso final, saindo chronologicamente dos treze anteriores, com | |
| difficuldade traria a perfeição louvada; imaginei que taes chaves eram | |
| fundidas antes da fechadura. Assim foi que me determinei a compôr o | |
| ultimo verso do soneto, e, depois de muito suar, saiu este: | |
| Perde-se a vida, ganha-se a batalha! | |
| Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magnifico. | |
| Sonoro, não ha duvida. E tinha um pensamento, a victoria ganha á custa | |
| da propria vida, pensamento alevantado e nobre. Que não fosse novidade, | |
| é possivel, mas tambem não era vulgar; e ainda agora não explico por | |
| que via mysteriosa entrou n'uma cabeça de tão poucos annos. Naquella | |
| occasião achei-o sublime. Recitei uma e muitas vezes a chave de ouro; | |
| depois repeti os dous versos seguidamente, e dispuz-me a ligal-os pelos | |
| doze centraes. A ideia agora, á vista do ultimo verso, pareceu-me | |
| melhor não ser Capitú; seria a justiça. Era mais proprio dizer que, na | |
| pugna pela justiça, perder-se-hia acaso a vida, mas a batalha ficava | |
| ganha. Tambem me occorreu acceitar a batalha, no sentido natural, e | |
| fazer della a lula pela patria, por exemplo; nesse caso a flor do ceu | |
| seria a liberdade. Esta accepção, porém, sendo o poeta um seminarista, | |
| podia não caber tanto como a primeira, e gastei alguns minutos em | |
| escolher uma ou outra. Achei melhor a justiça, mas afinal acceitei | |
| definitivamente uma ideia nova, a caridade, e recitei os dous versos, | |
| cada um a sou modo, um languidamente: | |
| Oh! flòr do ceu! oh! flòr candida e pura! | |
| e o outro com grande brio: | |
| Perde-se a vida, ganha-se a batalha! | |
| A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem e | |
| acabar bem não era pouco. Para me dar um banho de inspiração, evoquei | |
| alguns sonetos celebres, e notei que os mais delles eram facilimos; | |
| os versos saíam uns dos outros, com a ideia em si, tão naturalmente, | |
| que se não acabava de crer se ella é que os fizera, se elles é que a | |
| suscitavam. Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro | |
| verso e esperava o segundo; o segundo não vinha, nem terceiro, nem | |
| quarto; não vinha nenhum. Tive alguns impetos de raiva, e mais de | |
| uma vez pensei em sair da cama e ir ver tinta e papel; póde ser que, | |
| escrevendo, os versos acudissem, mas... | |
| Cançado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do ultimo verso, com a | |
| simples transposição do duas palavras, assim: | |
| Ganha-se a vida, perde-se a batalha! | |
| O sentido vinha a ser justamente o contrario, mas talvez isso mesmo | |
| trouxesse a inspiração. Neste caso, era uma ironia: não exercendo a | |
| caridade, póde-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha do ceu. Criei | |
| forças novas o esperei. Não tinha janella; se tivesse, é possivel que | |
| fosse pedir uma ideia á noite. E quem sabe se os vagalumes, luzindo cá | |
| em baixo, não seriam para mim como rimas das estrellas, e esta viva | |
| metaphora não me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e | |
| sentidos proprios? | |
| Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo | |
| tempo adeante escrevi algumas paginas em prosa, e agora estou compondo | |
| esta narração, não achando maior difficuldade que escrever, bem ou | |
| mal. Pois, senhores, nada me consola daquelle soneto que não fiz. Mas, | |
| como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, | |
| e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metaphysica, dou | |
| esses dous versos ao primeiro desoccupado que os quizer. Ao domingo, ou | |
| se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer occasião de lazer, póde | |
| tentar ver se o soneto sae. Tudo é dar-lhe uma ideia e encher o centro | |
| que falta. | |
| LVI | |
| Um seminarista. | |
| Tudo me ia repetindo o diabo do opusculo, com as suas lettras | |
| velhas e citações latinas. Vi sair daquellas folhas muitos perfis | |
| de seminaristas, os irmãos Albuquerques, por exemplo, um dos quaes | |
| é conego na Bahia, emquanto o outro seguiu medicina e dizem haver | |
| descoberto um especifico contra a febre amarella. Vi o Bastos, um | |
| magricella, que está de vigario em Meia-Ponte, se não morreu já; | |
| Luiz Borges, apesar de padre, fez-se politico, e acabou senador do | |
| imperio... Quantas outras caras me fitavam das paginas frias do | |
| _Panegyrico!_ Não, não eram frias; traziam o calor da juventude | |
| nascente, o calor do passado, o meu proprio calor. Queria lel-as outra | |
| vez, e lograva entender algum texto, tão recente como no primeiro | |
| dia, ainda que mais breve. Era um encanto ir por elle; ás vezes, | |
| inconscientemente, dobrava a folha como se estivesse lendo de verdade; | |
| creio que era quando os olhos me caíam na palavra do fim da pagina, e a | |
| mão, acostumada a ajudal-os, faziam o seu officio... | |
| Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era | |
| um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como | |
| os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com | |
| elle podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não | |
| fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam | |
| as outras, nem se deixavam apertar dellas, porque os dedos, sendo | |
| delgados e curtos, quando a gente cuidava tel-os entre os seus, já | |
| não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui | |
| como lá. Esta difficuldade em pousar foi o maior obstaculo que achou | |
| para tomar os costumes do seminario. O sorriso era instantaneo, mas | |
| tambem ria folgado e largo. Uma cousa não seria tão fugitiva, como o | |
| resto, a reflexão; iamos dar com elle, muita vez, olhos enfiados em si, | |
| cogitando. Respondia-nus sempre que meditava algum ponto espiritual, ou | |
| então que recordava a licção da vespera. Quando elle entrou na minha | |
| intimidade pedia-me frequentemente explicações e repetições miudas, | |
| e tinha memoria para guardal-as todas, até as palavras. Talvez esta | |
| faculdade prejudicasse alguma outra. | |
| Era mais velho que eu trez annos, filho de um advogado de Corityba, | |
| aparentado com um commerciante do Rio de Janeiro, que servia de | |
| correspondente ao pae. Este era homem de fortes sentimentos | |
| catholicos. Escobar tinha uma irmã, que era um anjo, dizia elle. | |
| --Não é só na belleza que é um anjo, mas tambem na bondade. Não imagina | |
| que boa creatura que ella é. Escreve-me muita vez, hei de mostrar-lhe | |
| as cartas della. | |
| De facto, eram simples e affectuosas, cheias de caricias e conselhos. | |
| Escobar contava-me historias della, interessantes, todas as quaes | |
| vinham a dar na bondade e no espirito daquella creatura; taes eram | |
| que me fariam capaz de acabar casando com ella, se não fosse Capitú. | |
| Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras delle, estive quasi | |
| a contar-lhe logo, logo, a minha historia. A principio fui timido, | |
| mas elle fez-se entrado na minha confiança. Aquelles modos fugitivos | |
| cessavam quando elle queria, e o meio e o tempo os fizeram mais | |
| pousados. Escobar veiu abrindo a alma toda, desde a porta da rua até | |
| ao fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, e uma casa assim | |
| disposta, não raro com janellas para todos os lados, muita luz e ar | |
| puro. Tambem as ha fechadas e escuras, sem janellas, ou com poucas e | |
| gradeadas, á semelhança de conventos o prisões. Outrosim, capellas e | |
| bazares, simples alpendres ou paços sumptuosos. | |
| Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; | |
| o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham | |
| chaves nem fechaduras, bastava empurral-as, e Escobar empurrou-as e | |
| entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que... | |
| LVII | |
| De preparação. | |
| Ah! mas não eram só os seminaristas que me iam saindo daquellas folhas | |
| velhas do _Panegyrico._ Ellas me trouxeram tambem sensações passadas, | |
| taes e tantas que eu não poderia dizel-as todas, sem tirar espaço ao | |
| resto. Uma dessas, e das primeiras, quizera contal'a aqui eu latim. | |
| Não é que a materia não ache termos honestos em nossa lingua, que é | |
| casta para os castos, como póde ser torpe para os torpes. Sim, leitora | |
| castissima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capitulo | |
| até ao fim, sem susto nem vexame. | |
| Já agora metto a historia em outro capitulo. Por mais composto que este | |
| me saia, ha sempre no assumpto alguma cousa menos austera, que pede | |
| umas linhas de repouso e preparação. Sirva este de preparação. E isto é | |
| muito, leitor meu amigo; o coração, quando examina a possibilidade do | |
| que ha de vir. as proporções dos acontecimentos e a copia delles, fica | |
| robusto e disposto, e o mal é menor mal. Tambem, se não fica então, não | |
| fica nunca. E aqui verás tal ou qual esperteza minha; porquanto, ao ler | |
| o que vás ler, é provavel que o aches menos cru do que esperavas. | |
| LVIII | |
| O tratado. | |
| Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminario, vi | |
| cair na rua uma senhora. O meu primeiro gesto, em tal caso, devia ser | |
| de pena ou de riso; não foi uma nem outra cousa, porquanto (e é isto | |
| que eu quizera dizer em latim) porquanto, a senhora tinha as meias mui | |
| lavadas, e não as sujou, levava ligas de seda, e não as perdeu. Varias | |
| pessoas acudiram, mas não tiveram tempo de a levantar; ella ergueu-se | |
| muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e enfiou pela rua proxima. | |
| --Este gosto de imitar as francezas da rua do Ouvidor, dizia-me José | |
| Dias andando e commentando a queda, é evidentemente um erro. As nossas | |
| moças devem andar como sempre andaram, com sou vagar e paciencia, e não | |
| este tique-tique afrancezado... | |
| Eu mal podia ouvil-o. As meias e as ligas da senhora branqueavam e | |
| enroscavam-se deante de mim, e andavam, caíam, erguiam-se e iam-se | |
| embora. Quando chegámos á esquina, olhei para a outra rua, e vi, a | |
| distancia, a nossa desastrada, que ia no mesmo passo, tique-tique, | |
| tique-tique... | |
| --Parece que não se machucou, disse eu. | |
| --Tanto melhor para ella, mas é impossivel que não tenha arranhado os | |
| joelhos; aquella presteza é manha... | |
| Creio que foi «manha» que elle disse; eu fiquei «nos joelhos | |
| arranhados». Dalli em deante, até o seminario, não vi mulher na rua, a | |
| quem não desejasse uma quéda; a algumas adivinhei que trazia as meias | |
| esticadas e as ligas, justas... Tal haveria que nem levasse meias... | |
| Mas eu as via com ellas... Ou então... Tambem é possivel... | |
| Vou esgarçando isto com reticencias, para dar uma ideia das minhas | |
| ideias, que eram assim diffusas e confusas; com certeza não dou nada. | |
| A cabeça ia-me quente, e o andar não era seguro. No seminario, a | |
| primeira hora foi insupportavel. As batinas traziam ar de saias, e | |
| lembravam-me a quéda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; | |
| todas as que eu encontrara na rua, mostravam-me agora de relance as | |
| ligas azues; eram azues. De noite, sonhei com ellas. Uma multidão de | |
| abominaveis creaturas veiu andar á roda de mim, tique-tique... Eram | |
| bellas, umas finas, outras grossas, todas ageis como o diabo. Accordei, | |
| busquei afugental-as com esconjuros e outros methodos, mas tão depressa | |
| dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam | |
| um vasto circulo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas | |
| sobre a minha cabeça. Assim fui até madrugada. Não dormi mais; rezei | |
| padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo este livro a verdade pura, | |
| é força confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas | |
| orações para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-tique, | |
| tique-tique... Pegava depressa na oração, sempre no meio para | |
| concertal-a bem, como se não tivesse havido interrupção, mas certamente | |
| não unia a phrase nova á antiga. | |
| Vindo o mal pela manha adeante, tentei vencel-o, mas por um modo que | |
| o não perdesse de todo. Sabios da escriptura, adivinhai o que podia | |
| ser. Foi isto. Não podendo rejeitar de mim aquelles quadros, recorri a | |
| um tratado entre a minha consciencia e a minha imaginação. As visões | |
| feminis seriam de ora avante consideradas como simples encarnações dos | |
| vicios, e por isso mesmo contemplaveis, como o melhor modo de temperar | |
| o caracter e aguerril-o para os combates asperos da vida. Não formulei | |
| isto por palavras, nem fui preciso; o contracto fez-se tacitamente, com | |
| alguma repugnancia, mas fez-se. E por alguns dias, era eu mesmo que | |
| evocava as visões para fortalecer-me, e não as rejeitava, senão quando | |
| ellas mesmas, de cançadas, se iam embora. | |
| LIX | |
| Convivas de boa memoria. | |
| Ha dessas reminiscências que não descançam antes que a penna ou a | |
| lingua as publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa | |
| memoria. A vida é cheia de taes convivas, e eu sou acaso um delles, | |
| comquanto a prova de ter a memoria fraca seja exactamente não me acudir | |
| agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta. | |
| Não, não, a minha memoria não é boa. Ao contrario, é comparavel a | |
| alguem que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar dellas nem caras | |
| nem nomes, e sómente raras circumstancias. A quem passe a vida na | |
| mesma casa de familia, com os seus eternos moveis e costumes, pessoas | |
| e affeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. | |
| Como eu invejo os que não esqueceram a còr das primeiras calças que | |
| vestiram! Eu não atino com a das que enfiei hontem. Juro só que não | |
| eram amarellas porque execro essa côr; mas isso mesmo póde ser olvido | |
| e confusão. | |
| E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos | |
| livros confusos, mas tudo se póde metter nos livros omissos. Eu, quando | |
| leio algum desta outra casta, não me afflijo nunca. O que faço, em | |
| chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não | |
| achei nelle. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões | |
| profundas! Os rios, as montanhas, as egrejas que não vi nas folhas | |
| lidas, todos me apparecem agora com as suas aguas, as suas arvores, | |
| os seus altares, e os generaes sacam das espadas que tinham ficado | |
| na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo | |
| marcha com uma alma imprevista. | |
| É que tudo se acha fóra de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho | |
| as lacunas alheias; assim pódes tambem preencher as minhas. | |
| LX | |
| Querido opusculo! | |
| Assim fiz eu ao _Panegyrico de Santa Monica_, e fiz mais: puz-lhe não | |
| só o que faltava da santa, mas ainda cousas que não eram della. Viste o | |
| soneto, as meias, as ligas, o seminarista Escobar e vários outros. Vás | |
| agora ver o mais que naquelle dia me foi saindo das paginas amarellas | |
| do opusculo. | |
| Querido opusculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta um | |
| velho par de chinellas? Entretanto, ha muita vez no casal de chinellas | |
| um como aroma e calor de dous pés. Gastas e rotas, não deixam de | |
| lembrar que uma pessoa as calçava de manhã, ao erguer da cama, ou as | |
| descalçava á noite, ao entrar nella. E se a comparação não vale, porque | |
| as chinellas são ainda uma parte da pessoa e tiveram o contacto dos | |
| pés, aqui estão outras lembranças, como a pedra da rua, a porta da | |
| casa, um assobio particular, um prégão de quitanda, como aquelle das | |
| cocadas que contei no cap. XVIII. Justamente, quando contei o prégão | |
| das cocadas, fiquei tão curtido de saudades que me lembrou fazel-o | |
| escrever por um amigo, mestre de musica, e grudal-o ás pernas do | |
| capitulo. Se depois jarretei o capitulo, foi porque outro musico, a | |
| quem o mostrei, me confessou ingenuamente não achar no trecho escripto | |
| nada que lhe accordasse saudades. Para que não aconteça o mesmo aos | |
| outros profissionaes que por ventura me lerem, melhor é poupar ao | |
| editor do livro o trabalho e a despeza da gravura. Vès que não puz | |
| nada, nem ponho. Já agora creio que não basta que os pregões de rua, | |
| como os opusculos de seminario, encerrem casos, pessoas e sensações; é | |
| preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que | |
| tudo é calado e incolor. | |
| Mas, vamos ao mais que me foi saindo das paginas amarellas. | |
| LXI | |
| A vacca de Homero. | |
| O mais foi muito. Vi sairem os primeiros dias da separação, duros e | |
| opacos, sem embargo das palavras de conforto que me deram os padres e | |
| os seminaristas, e as de minha mãe e tio Cosme, trazidas por José Dias | |
| ao seminario. | |
| --Todos estão saudosos, disse-me este, mas a maior saudade está | |
| naturalmente no maior dos corações; e qual é elle? perguntou escrevendo | |
| a resposta nos olhos. | |
| --Mamãe, acudi eu. | |
| José Dias apertou-me as mãos com alvoroço, e logo pintou a tristeza de | |
| minha mãe, que falava de mim todos os dias, quasi a todas as horas. | |
| Como a approvasse sempre, e accrescentasse alguma palavra relativamente | |
| aos dotes que Deus me dera, o desvanecimento de minha mãe nessas | |
| occasiões era indescriptivel; e contava-me tudo isso cheio de uma | |
| admiração lacrimosa. Tio Cosme tambem se enternecia muito. | |
| --Hontem até se deu um caso interessante. Tendo eu dito á | |
| Excellentissima que Deus lhe dera, não um filho, mas um anjo do ceu, o | |
| doutor ficou tão commovido que não achou outro modo de vencer o choro | |
| senão fazendo-me um daquelles elogios de galhofa que só elle sabe. Não | |
| é preciso dizer que D. Gloria enxugou furtivamente uma lagrima. Ou ella | |
| não fosse mãe! Que coração amantissimo! | |
| --Mas, Sr. José Dias, e a minha saida daqui? | |
| --Isso é negocio meu. A viagem á Europa é o que é preciso, mas póde | |
| fazer-se daqui a um ou dous annos, em 1859 ou 1860... | |
| --Tão tarde! | |
| --Era melhor que fosse este mesmo anno, mas demos tempo ao tempo. Tenha | |
| paciencia, vá estudando, não se perde nada em ir sabendo já daqui | |
| alguma cousa; e, demais, ainda não acabando padre, a vida do seminario | |
| é util, e vale sempre entrar no mundo ungido com os santos oleos da | |
| theologia... | |
| Neste ponto,--lembra-me como se fosse hoje,--os olhos de José | |
| Dias fulguraram tão intensamente que me encheram de espanto. As | |
| palpebras cairam depois, e assim ficaram por alguns instantes, até | |
| que novamente se ergueram, e os olhos fixaram-se na parede do palco, | |
| como que embebidos em alguma cousa, se não era em si mesmos; depois | |
| despegaram-se da parede e entraram a vagar pelo pateo todo. Podia | |
| comparal-o aqui á vacca de Homero; andava e gemia em volta da cria | |
| que acabava de parir. Não lhe perguntei o que é que tinha, já por | |
| acanhamento, já porque dous lentes, um delles de theologia, vinham | |
| caminhando na nossa direcção. Ao passarem por nós, o aggregado, que os | |
| conhecia, cortejou-os com as deferencias devidas, e pediu-lhes noticias | |
| minhas. | |
| --Por ora nada se póde affiançar, disse um delles. mas parece que dará | |
| conta da mão. | |
| --É o que eu lhe dizia agora mesmo, acudiu José Dias. Conto ouvir-lhe | |
| a missa nova; mas ainda que não chegue a ordenar-se, não póde ter | |
| melhores estudos que os que fizer aqui. Para a viagem da existencia, | |
| concluiu demorando mais as palavras, irá ungido com os santos oleos da | |
| theologia... | |
| Desta vez a fulguração dos olhos foi menor, as palpebras não lhe cairam | |
| nem as pupillas fizeram os movimentos anteriores. Ao contrario, todo | |
| elle era attenção e interrogação; quando muito, um sorriso claro e | |
| amigo lhe errava nos labios. O lente de theologia gostou da metaphora, | |
| e disse-lh'o; elle agradeceu, explicando que eram ideias que lhe | |
| escapavam no correr da conversação; não escrevia nem orava. Eu é que | |
| não gostei nada; e logo que os lentes se foram, sacudi a cabeça: | |
| --Não quero saber dos santos oleos da theologia; desejo sair daqui o | |
| mais cedo que puder, ou já... | |
| --Já, meu anjo, não póde ser; mas póde succeder que muito antes do que | |
| imaginamos. Quem sabe se este mesmo anno de 58? Tenho um plano feito, | |
| e penso já nas palavras com que hei de expôl-o a D. Gloria; estou certo | |
| que ella cederá e irá comnosco. | |
| --Duvido que mamãe embarque. | |
| --Veremos. Mãe é capaz de tudo; mas, com ella ou sem ella, tenho por | |
| certa a nossa ida, e não haverá esforço que eu não empregue, deixe | |
| estar. Paciencia é que é preciso. E não faça aqui nada que dê logar a | |
| censuras ou queixas; muita docilidade e toda a apparente satisfação. | |
| Não ouviu o elogio do lente? E que você tem-se portado bem. Pois | |
| continue. | |
| --Mas, 1859 ou 1860 é muito tarde. | |
| --Será este anno, replicou José Dias. | |
| --Daqui a tres mezes? | |
| --Ou seis. | |
| --Não; tres mezes. | |
| --Pois sim. Tenho agora um plano, que me parece melhor que outro | |
| qualquer. É combinar a ausencia de vocação ecclesiastica e a | |
| necessidade de mudar de ares. Você porque não tosse? | |
| --Por que não tusso? | |
| --Já, já, não, mas eu hei de avisar você para tossir, quando fôr | |
| preciso, aos poucos, uma tossesinha secca, e algum fastio; eu irei | |
| preparando a Excellentissima... Oh! tudo isto é em beneficio della. | |
| Uma vez que o filho não póde servir a egreja, como deve ser servida, o | |
| melhor modo de cumprir a vontade de Deus é dedical-o a outra cousa. O | |
| mundo tambem é egreja para os bons... | |
| Pareceu-me outra vez a vacca de Homero, como se este «mundo tambem é | |
| egreja para os bons», fosse outro bezerro, irmão dos «santos oleos da | |
| theologia.» Mas não dei tempo á ternura materna, e repliquei: | |
| --Ah! entendo! mostrar que estou doente para embarcar, não é? | |
| José Dias hesitou um pouco, depois explicou-se: | |
| --Mostrar a verdade, porque, francamente, Bentinho, eu ha mezes que | |
| desconfio do seu peito. Você não anda bom do peito. Em pequeno, | |
| teve umas febres e uma ronqueira... Passou tudo, mas ha dias em que | |
| está mais descorado. Não digo que já seja o mal, mas o mal póde vir | |
| depressa. N'uma hora cae a casa. Por isso, se aquella santa senhora não | |
| quizer ir comnosco,--ou para que vá mais depressa, acho que uma boa | |
| tosse... Se a tosse ha de vir de verdade, melhor é apressal-a... Deixe | |
| estar, eu aviso... | |
| --Bem, mas em saindo daqui não ha de ser para embarcar logo; saio | |
| primeiro, depois cuidaremos do embarque; o embarque é que póde ficar | |
| para o anno. Não dizem que o melhor tempo é abril ou maio? Pois seja | |
| maio. Primeiro deixo o seminario, daqui a dous mezes... | |
| E porque a palavra me estivesse a pigarrear na garganta, dei uma volta | |
| rapida, e perguntei-lhe á queima-roupa: | |
| --Capitú como vae? | |
| LXII | |
| Uma ponta de Iago. | |
| A pergunta era imprudente, na occasião em que eu cuidava de transferir | |
| o embarque. Equivalia a confessar que o motivo principal ou unico | |
| da minha repulsa ao seminario era Capitú, e lazer crer improvavel a | |
| viagem. Comprehendi isto depois que falei; quiz emendar-me, mas nem | |
| soube como, nem elle me deu tempo. | |
| --Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquillo emquanto não | |
| pegar algum peralta da visinhança, que case com ella... | |
| Estou que empallideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo | |
| todo. A noticia de que ella vivia alegre, quando eu chorava todas | |
| as noites, produziu-me aquelle effeito, acompanhado de um bater de | |
| coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvil-o. Ha alguma | |
| exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de | |
| partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. | |
| Por outro lado, se entendermos que a audiencia aqui não é das orelhas, | |
| senão da memoria, chegaremos á exacta verdade. A minha memoria ouve | |
| ainda agora as pancadas do coração naquelle instante. Não esqueças | |
| que era a emoção do primeiro amor. Estive quasi a perguntar a José | |
| Dias que me explicasse a alegria de Capitú, o que é que ella fazia, se | |
| vivia rindo, cantando ou pulando, mas retive-me a tempo, e depois outra | |
| ideia... | |
| Outra ideia, não,--um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciume, | |
| leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir | |
| commigo as palavras de José Dias: « Algum peralta da visinhança.» Em | |
| verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia tão nella, della e para | |
| ella, que a intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade; | |
| nunca me acudiu que havia peraltas na visinhança, vária idade e feitio, | |
| grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns olhavam | |
| para Capitú,--e tão senhor me sentia della que era como se olhassem | |
| para mim, um simples dever de admiração e de inveja. Separados um do | |
| outro pelo espaço e pelo destino, o mal apparecia-me agora, não só | |
| possivel, mas certo. E a alegria de Capitú confirmava a suspeita; se | |
| ella vivia alegre é que já namorava a outro, acompanhal-o-hia com os | |
| olhos na rua, falar-lhe-hia á janella, ás ave-marias, trocariam flores | |
| e... | |
| E... que? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti | |
| mesmo, escusado é ler o resto do capitulo e do livro, não acharás mais | |
| nada, ainda que eu o diga com todas as lettras da etymologia. Mas se o | |
| achaste, comprehenderás que eu, depois de estremecer, tivesse um impeto | |
| de atirar-me pelo portão fora, descer o resto da ladeira, correr, | |
| chegar a casa do Padua, agarrar Capitú e intimar-lhe que me confessasse | |
| quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da visinhança. Não | |
| fiz nada. Os mesmos sonhos que ora conto não tiveram, naquelles tres | |
| ou quatro minutos, esta logica de movimentos e pensamentos. Eram | |
| soltos, emendados e mal emendados, com o desenho truncado e torto, | |
| uma confusão, um turbilhão, que me cegava e ensurdecia. Quando tornei | |
| a mim, José Dias concluía uma phrase, cujo principio não ouvi, e | |
| o mesmo fim era vago: «A conta que dará de si.» Que conta e quem? | |
| Cuidei naturalmente que falava ainda de Capitú, e quiz perguntar-lh'o, | |
| mas a vontade morreu ao nascer, como tantas outras gerações dellas. | |
| Limitei-me a inquirir do aggregado quando é que iria a casa ver minha | |
| mãe. | |
| --Estou com saudades de mamãe. Posso ir já esta semana? | |
| --Vae sabbado. | |
| --Sabbado? Ah! sim! sim! Peça a mamãe que me mande buscar sabbado! | |
| Sabbado! Este sabbado, não? Que me mande buscar, sem falta. | |
| LXIII | |
| Metades de um sonho. | |
| Fiquei ancioso pelo sabbado. Até lá os sonhos perseguiam-me, ainda | |
| accordado, e não os digo aqui para não alongar esta parte do livro. Um | |
| só ponho, e no menor numero de palavras, ou antes porei dous, porque | |
| um nasceu de outro, a não ser que ambos formem duas metades de um só. | |
| Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que | |
| perturbava assim a adolescencia de um pobre seminarista. Não fosse | |
| elle, e este livro seria talvez uma simples pratica parochial, se eu | |
| fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encyclica, se papa, como | |
| me recommendára tio Cosme: «Anda lá, meu rapaz, volta-me papa!» Ah! | |
| porque não cumpri esse desejo? Depois de Napoleão, tenente e imperador, | |
| todos os destinos estão neste seculo. | |
| Quanto ao sonho foi isto. Como estivesse a espiar os peraltas da | |
| visinhança, vi um destes que conversava com a minha amiga ao pé da | |
| janella. Corri ao logar, elle fugiu; avancei para Capitú, mas não | |
| estava só, tinha o pae ao pé de si, enxugando os olhos e mirando um | |
| triste bilhete de loteria. Não me parecendo isto claro, ia pedir a | |
| explicação, quando elle de si mesmo a deu; o peralta fôra levar-lhe a | |
| lista dos premios da loteria, e o bilhete saira branco. Tinha o numero | |
| 4004. Disse-me que esta symetria de algarismos era mysteriosa e bella, | |
| e provavelmente a roda andára mal; era impossivel que não devesse ter | |
| a sorte grande. Emquanto elle falava, Capitú dava-me com os olhos | |
| todas as sortes grandes e pequenas. A maior destas devia ser dada com | |
| a bocca. E aqui entra a segunda parte do sonho. Padua desappareceu, | |
| como as suas esperanças do bilhete. Capitú inclinou-se para fóra, | |
| eu relancei do olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas mãos, | |
| resmunguei não sei que palavras, e accordei sósinho no dormitorio. | |
| O interesse do que acabas de ler não está na materia do sonho, mas nos | |
| esforços que fiz para ver se dormia novamente e pegava nelle outra vez. | |
| Nunca dos nuncas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em | |
| fechar os olhos, apertal-os bem, esquecer tudo para dormir, mas não | |
| dormia. Esse mesmo trabalho fez-me perder o somno até á madrugada. | |
| Sobre a madrugada, consegui concilial-o, mas então nem peraltas, nem | |
| bilhetes de loteria, nem sortes grandes ou pequenas,--nada dos nadas | |
| veiu ter commigo. Não sonhei mais aquella noite, e dei mal as licções | |
| daquelle dia. | |
| LXIV | |
| Uma ideia e um escrupulo. | |
| Relendo o capitulo passado, acóde-me uma ideia e um escrupulo. O | |
| escrupulo é justamente de escrever a ideia, não a havendo mais | |
| banal na terra, posto que daquella banalidade do sol e da lua, que | |
| o ceu nos dá todos os dias e todos os mezes. Deixei o manuscripto, | |
| e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas | |
| dimensões, disposições e pinturas, é reproducção da minha antiga casa | |
| de Matacavallos. Outrosim, como te disse no capitulo II, o meu fim | |
| em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás não | |
| alcancei. Pois o mesmo succedeu áquelle sonho do seminario, por mais | |
| que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos officios do | |
| homem é fechar e apertar muito os olhos, a ver se continua pela noite | |
| velha o sonho truncado da noite moça. Tal é a ideia banal e nova que | |
| eu não quizera pôr aqui, e só provisoriamente a escrevo. | |
| Antes de concluir este capitulo, fui á janella indagar da noite por que | |
| razão os sonhos hão de ser assim tão tenues que se esgarçam ao menor | |
| abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais. A noite não | |
| me respondeu logo. Estava deliciosamente bella, os morros pallejavam | |
| de luar e o espaço morria de silencio. Como eu insistisse, declarou-me | |
| que os sonhos já não pertencem á sua jurisdicção. Quando elles moravam | |
| na ilha que Luciano lhes deu, onde ella tinha o seu palacio, e donde os | |
| fazia sair com as suas caras de varia feição, dar-me-hia explicações | |
| possiveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram | |
| aposentados, e os modernos moram no cerebro da pessoa. Estes, ainda que | |
| quizessem imitar os outros, não poderiam fazel-o; a ilha dos sonhos, | |
| como a dos amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora | |
| objecto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados-Unidos. | |
| Era uma allusão ás Fillipinas. Pois que não amo a politica, e ainda | |
| menos a politica internacional, fechei a janella e vim acabar este | |
| capitulo para ir dormir. Não peço agora os sonhos de Luciano, nem | |
| outros, filhos da memoria ou da digestão; basta-me um somno quieto e | |
| apagado. De manhã, com a fresca, irei dizendo o mais da minha historia | |
| e suas pessoas. | |
| LXV | |
| A dissimulação. | |
| Chegou o sabbado, chegaram outros sabbados, e eu acabei affeiçoando-me | |
| á vida nova. Ia alternando a casa e o seminario. Os padres gostavam de | |
| mim, os rapazes tambem, e Escobar mais que os rapazes e os padres. No | |
| fim de cinco semanas estive quasi a contar a este as minhas penas e | |
| esperanças; Capitú refreou-me. | |
| --Escobar é muito meu amigo, Capitú! | |
| --Mas não é meu amigo. | |
| --Póde vir a ser; elle já me disse que ha de vir cá para conhecer mamãe. | |
| --Não importa; você não tem direito de contar um segredo que não é só | |
| seu, mas tambem meu, e eu não lhe dou licença de dizer nada a pessoa | |
| nenhuma. | |
| Era justo, calei-me e obedeci. Outra cousa em que obedeci ás suas | |
| reflexões foi, logo no primeiro sabbado, quando eu fui á casa della, | |
| e, após alguns minutos de conversa, me aconselhou a ir embora. | |
| --Hoje não fique aqui mais tempo; vá para casa, que eu lá vou logo. É | |
| natural que D. Gloria queira estar com você muito tempo, ou todo, se | |
| puder. | |
| Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem podia | |
| deixar de citar um terceiro exemplo, mas os exemplos não se fizeram | |
| senão para ser citados, e este é tão bom que a omissão seria um crime. | |
| Foi á minha terceira ou quarta vinda á casa. Minha mãe depois que lhe | |
| respondi ás mil perguntas que me fez sobre o tratamento que me davam, | |
| os estudos, as relações, a disciplina, e se me doia alguma cousa, e | |
| se dormia bem, tudo o que a ternura das mães inventa para cançar a | |
| paciencia de um filho, concluiu voltando-se para José Dias: | |
| --Sr. José Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre? | |
| --Excellentissima... | |
| --E você, Capitú, interrompeu minha mãe voltando-se para a filha do | |
| Padua que estava na sala, com ella,--você não acha que o nosso Bentinho | |
| dará um bom padre? | |
| --Acho que sim, senhora, respondeu Capitú cheia de convicção. | |
| Não gostei da convicção. Assim lh'o disse, na manhã seguinte, na | |
| quintal della, recordando as palavras da vespera, e lançando-lho em | |
| rosto, pela primeira vez, a alegria que ella mostrára desde a minha | |
| entrada no seminario, quando eu vivia curtido de saudades. Capitú | |
| fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, | |
| uma vez que suspeitavam de nós; tambem tivera noites desconsoladas, e | |
| os dias, em casa della, foram tão tristes como os meus; podia indagal-o | |
| do pae e da mãe. A mãe chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas, que | |
| não pensasse mais em mim. | |
| --Com D. Gloria e D. Justina mostro-me naturalmente alegre, para que | |
| não pareça que a denuncia de José Dias é verdadeira. Se parecesse, | |
| ellas tratariam de separar-nos mais, e talvez acabassem não me | |
| recebendo... Para mim, basta o nosso juramento de que nos havemos de | |
| casar um com outro. | |
| Era isto mesmo; deviamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao | |
| mesmo tempo gosar toda a liberdade anterior, e construir tranquillos o | |
| nosso futuro. Mas o exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte, | |
| ao almoço; minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que | |
| mão havia en de abençoar o povo á missa, contou que, dias antes, | |
| estando a falar de moças que se casam cedo, Capitú lhe dissera: «Pois a | |
| mim quem me ha de casar ha de ser o padre Bentinho; eu espero que elle | |
| se ordene!» Tio Cosmo riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima | |
| Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, | |
| que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e | |
| tratei de comer. Mas comi mal; estava tão contente com aquella grande | |
| dissimulação de Capitú que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri | |
| a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astucia. Capitú sorriu de | |
| agradecida. | |
| --Você tem razão, Capitú, concluí eu; vamos enganar toda esta gente. | |
| --Não é? disse ella com ingenuidade. | |
| LXVI | |
| Intimidade. | |
| Capitú ia agora entrando na alma de minha mãe. Viviam o mais do tempo | |
| juntas, falando de mim, a proposito do sol e da chuva, ou de nada; | |
| Capitú ia lá coser, ás manhãs; alguma vez ficava para jantar. | |
| Prima Justina não acompanhava a parenta naquellas finezas, mas não | |
| tratava de todo mal a minha amiga. Era assaz sincera para dizer o mal | |
| que sentia de alguem, e não sentia bem de pessoa alguma. Talvez do | |
| marido, mas o marido era morto; em todo caso, não existira homem capaz | |
| de competir com elle na affeição, no trabalho e na honestidade, nas | |
| maneiras e na agudeza de espirito. Esta opinião, segundo tio Cosme, | |
| era posthuma, pois em vida andavam ás brigas, e os ultimos seis mezes | |
| acabaram separados. Tanto melhor para a justiça della; o louvor dos | |
| mortos é um modo de orar por elles. Tambem gostaria de minha mãe, ou | |
| se algum mal pensou della foi entre si e o travesseiro. Comprehende-se | |
| que, de apparencia, lhe désse a estima devida. Não penso que ella | |
| aspirasse a algum legado; as pessoas assim dispostas excedem os | |
| serviços naturaes, fazem-se mais risonhas, mais assiduas, multiplicam | |
| os cuidados, precedem os famulos. Tudo isso era contrario á natureza | |
| de prima Justina, feita de azedume e de implicancia. Como vivesse de | |
| favor na casa, explica-se que não desestimasse a dona e calasse os seus | |
| resentimentos, ou só dissesse mal della a Deus e ao diabo. | |
| Caso tivesse resentimentos de minha mãe, não era uma razão mais para | |
| detestar Capitú, nem ella precisava de razões supplementares. Comtudo, | |
| a intimidade de Capitú fel-o mais aborrecivel á minha parenta. Se a | |
| principio não a tratava mal, com o tempo trocou de maneiras e acabou | |
| fugindo-lhe. Capitú, attenta, desde que a não via, indagava della e | |
| ia procural-a. Prima Justina tolerava esses cuidados. A vida é cheia | |
| de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de os | |
| infringir deslavadamente. Demais, Capitú usava certa magia que captiva; | |
| prima Justina acabava sorrindo, ainda que azedo, mas a sós com minha | |
| mãe achava alguma palavra ruim que dizer da menina. | |
| Como minha mãe adoecesse de uma febre, que a pòz ás portas da morte, | |
| quiz que Capitú lhe servisse de enfermeira. Prima Justina, posto que | |
| isto a aliviasse de cuidados penosos, não perdoou á minha amiga a | |
| intervenção. Um dia, perguntou-lhe se não tinha que fazer em casa; | |
| outro dia, rindo, soltou-lhe este epigramma: «Não precisa correr tanto; | |
| o que tiver de ser seu ás mãos lhe ha de ir.» | |
| LXVII | |
| Um peccado. | |
| Já agora não tiro a doente da cama sem contar o que se deu commigo. Ao | |
| cabo de cinco dias, minha mãe amanheceu tão transtornada que ordenou me | |
| mandassem buscar ao seminario. Em vão tio Cosme: | |
| --Mana Gloria, você assusta-se sem motivo, a febre passa... | |
| --Não! não! mandem buscal-o! Posso morrer, e a minha alma não se salva, | |
| se Bentinho não estiver ao pé de mim. | |
| --Vamos assustal-o, | |
| --Pois não lhe digam nada, mas vão buscal-o, já, já, não se demorem. | |
| Cuidaram fosse delirio; mas, não custando nada trazer-me, José Dias | |
| foi incumbido do recado. Entrou tão atordoado que me assustou. Contou | |
| particularmente ao reitor o que havia, e recebi licença para ir a casa. | |
| Na rua, iamos calados, elle não alterando o passo do costume,--a | |
| premissa antes da consequencia, a consequencia antes do conclusão,--mas | |
| cabisbaixo e suspirando, eu temendo ler no rosto delle alguma noticia | |
| dura e definitiva. Só me falára na doença, como negocio simples; mas | |
| o chamado, o silencio, os suspiros podiam dizer alguma cousa mais. O | |
| coração batia-me com força, as pernas bambeavam-me, mais de uma vez | |
| cuidei cair... | |
| O anceio de escutar a verdade complicava-se em mim com o temor de a | |
| saber. Era a primeira vez que a morte me apparecia assim perto, me | |
| envolvia, me encarava com os olhos furados e escuros. Quanto mais | |
| andava aquella rua dos Barbonos, mais me aterrava a ideia de chegar a | |
| casa, de entrar, de ouvir os prantos, de ver um corpo defuncto... Oh! | |
| eu não poderia nunca expòr aqui tudo o que senti naquelles terriveis | |
| minutos. A rua, por mais que José Dias andasse superlativamente | |
| devagar, parecia fugir-me debaixo dos pés, as casas voavam de um e | |
| outro lado, e uma corneta que nessa occasião tocava no quartel dos | |
| Municipaes Permanentes resoava aos meus ouvidos como a trombeta do | |
| juizo final. | |
| Fui, cheguei aos Arcos, entrei na rua de Matacavallos. A casa não era | |
| logo alli, mas muito além da dos Invalidos, perto da do Senado. Trez ou | |
| quatro vezes, quizera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a | |
| bocca; mas agora, já nem tinha tal desejo. Ia só andando, acceitando o | |
| peor, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, | |
| e foi então que a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao | |
| coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras, | |
| mas uma ideia que poderia ser traduzida por ellas: «Mamãe defuncta, | |
| acaba o seminario.» | |
| Leitor, foi um relampago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, | |
| e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo effeito do remorso que me | |
| ficou. Foi uma suggestão da luxuria e do egoismo. A piedade filial | |
| desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa, pelo | |
| desapparecimento da divida e do devedor; foi um instante, menos que um | |
| instante, o centesimo de um instante, ainda assim o sufficiente para | |
| complicar a minha afflicção com um remorso. | |
| José Dias suspirava. Uma vez olhou para mim tão cheio de pena que me | |
| pareceu haver-me adivinhado, e eu quiz pedir-lhe que não dissesse nada | |
| a ninguem, que eu ia castigar-me, etc. Mas a pena trazia tanto amor, | |
| que não podia ser pezar do meu peccado; mas então era sempre a morte de | |
| minha mãe... Senti uma angustia grande, um nó na garganta, e não pude | |
| mais, chorei de uma vez. | |
| --Que é, Bentinho? | |
| --Mamãe...? | |
| --Não! não! Que ideia é essa? O estado della é gravissimo, mas não é | |
| mal de morte, e Deus póde tudo. Enxugue os olhos, que é feio um mocinho | |
| da sua edade andar chorando na rua. Não ha de ser nada, uma febre... As | |
| febres, assim como dão com força assim tambem se vão embora... Com os | |
| dedos, não; onde está o lenço? | |
| Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de José Dias uma só | |
| me ficasse no coração; foi aquelle _gravissimo._ Vi depois que elle só | |
| queria dizer _grave_, mas o uso do superlativo faz a bocca longa, e, | |
| por amor do periodo, José Dias fez crescer a minha tristeza. Se achares | |
| neste livro algum caso da mesma familia, avisa-me, leitor, para que o | |
| emende na segunda edição; nada ha mais feio que dar pernas longuissimas | |
| a ideias brevissimas. Enxuguei os olhos, repito, e fui andando, ancioso | |
| agora por chegar a casa, e pedir perdão a minha mãe do ruim pensamento | |
| que tive. Emfim, chegámos, entramos, subi tremulo os seis degraus da | |
| escada, e d'ahi a pouco, debruçado sobre a cama, ouvia as palavras | |
| ternas de minha mãe que me apertava muito as mãos, chamando-me seu | |
| filho. Estava queimando, os olhos ardiam nos meus, toda ella parecia | |
| consumida por um volcão interno. Ajoelhei-me ao pé do leito, mas como | |
| este era alto, fiquei longe das suas caricias: | |
| --Não, meu filho, levanta, levanta! | |
| Capitú, que estava na alcova, gostou de ver a minha entrada, os | |
| meus gestos, palavras e lagrimas, segundo me disse depois; mas não | |
| suspeitou naturalmente todas as causas da minha afflicção. Entrando no | |
| meu quarto, pensei em dizer tudo a minha mãe, logo que ella ficasse | |
| boa, mas esta ideia não me mordia, era uma velleidade pura, uma acção | |
| que eu não faria nunca, por mais que o peccado me doesse. Então, | |
| levado do remorso, usei ainda uma vez do meu velho meio das promessas | |
| espirituaes, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de | |
| minha mãe, e eu lhe rezaria dous mil padre-nossos. Padre que me lês, | |
| perdoa este recurso; foi a ultima vez que o empreguei. A crise em | |
| que me achava, não menos que o costume e a fé, explica tudo. Eram | |
| mais dous mil; onde iam os antigos? Não paguei uns nem outros, mas | |
| saindo de almas candidas e verdadeiras taes promessas são como a moeda | |
| fiduciaria,--ainda que o devedor as não pague, valem a somma que dizem. | |
| LXVIII | |
| Adiemos a virtude. | |
| Poucos teriam animo de confessar aquelle meu pensamento da rua de | |
| Matacavallos. Eu confessarei tudo o que importar á minha historia. | |
| Montaigne escreveu de si: _ce ne sont pas mes gestes que j'ecris; c'est | |
| moi, c'est mon essence._ Ora, ha só um modo de escrever a propria | |
| essencia, é contal-a toda, o bem e o mal. Tal faço eu, á medida que me | |
| vae lembrando o convindo á construção ou reconstrucção de mim mesmo. | |
| Por exemplo, agora que contei um peccado, diria com muito gosto alguma | |
| bella acção contemporanea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica | |
| transferida a melhor opportunidade. | |
| Nem perderás em esperar, meu amigo; ao contrario, acóde-me agora que... | |
| Não só as bellas acções são bellas em qualquer occasião, como são | |
| tambem possiveis e provaveis, pela theoria que tenho dos peccados e | |
| das virtudes, não menos simples que clara. Reduz-se a isto que cada | |
| pessoa nasce com certo numero delles e dellas, alliados por matrimonio | |
| para se compensarem na vida. Quando um de taes conjuges é mais forte | |
| que o outro, elle só guia o individuo, sem que este, por não haver | |
| praticado tal virtude ou commettido tal peccado, se possa dizer isento | |
| de um ou de outro; mas a regra é dar-se a pratica simultanea dos dous, | |
| com vantagem do portador de ambos, e alguma vez com resplendor maior da | |
| terra e do ceu. É pena que eu não possa fundamentar isto com um ou mais | |
| casos extranhos; falta-me tempo. | |
| Pelo que me toca, é certo que nasci com alguns daquelles casaes, e | |
| naturalmente ainda os possuo. Já me succedeu, aqui no Engenho Novo, por | |
| estar uma noite com muita dòr de cabeça, desejar que o trem da Central | |
| estourasse longe dos meus ouvidos e interrompesse a linha por muitas | |
| horas, ainda que morresse alguem; e no dia seguinte perdi o trem da | |
| mesma estrada, por ter ido dar a minha bengala a um cego que não trazia | |
| bordão. _Voilà mes gestes, voilà mon essence._ | |
| LXIX | |
| A missa. | |
| Um dos gestos que melhor exprimem a minha essencia foi a devoção | |
| com que corri no domingo proximo a ouvir missa em S. Antonio dos | |
| Pobres. O aggregado quiz ir commigo, e principiou a vestir-se, mas | |
| era tão lento nos suspensorios e nas presilhas, que não pude esperar | |
| por elle. Demais, eu queria estar só. Sentia necessidade de evitar | |
| qualquer conversação que me desviasse o pensamento do fim a que ia, | |
| e era reconciliar-me com Deus, depois do que se passou no capitulo | |
| LXVII. Nem era só pedir-lhe perdão do peccado, era tambem agradecer | |
| o restabelecimento de minha mãe, e, visto que digo tudo, fazel-o | |
| renunciar ao pagamento da minha promessa. Jehovah, posto que divino, | |
| ou por isso mesmo, é um Rothschild muito mais humano, e não faz | |
| moratorias, perdoa as dividas integralmente, uma vez que o devedor | |
| queira devéras emendar a vida e cortar nas despezas. Ora, eu não | |
| queria outra cousa; dalli em deante não faria mais promessas que não | |
| pudesse pagar, e pagaria logo as que fizesse. | |
| Ouvi missa; ao levantar a Deus, agradeci a vida e saude de minha mãe; | |
| depois pedi perdão do peccado e relevação da divida, e recebi a benção | |
| final do officiante como um acto solemne de reconciliação. No fim, | |
| lembrou-me que a egreja estabeleceu no confessionario um cartorio | |
| seguro, e na confissão o mais authentico dos instrumentos para o ajuste | |
| de contas moraes entre o homem e Deus. Mas a minha incorrigivel timidez | |
| me fechou essa porta certa; receiei não achar palavras com que dizer ao | |
| confessor o meu segredo. Como o homem muda! Hoje chego a publical-o. | |
| LXX | |
| Depois da missa. | |
| Rezei ainda, persignei-me, fechei o livro de missa e caminhei para a | |
| porta. A gente mão era muita, mas a egreja tambem não é grande, e não | |
| pude sair logo, logo, mas devagar. Havia homens e mulheres, velhos e | |
| moços, sedas e chitas, e provavelmente olhos feios e bellos, mas eu | |
| não vi uns nem outros. Ia na direcção da porta, com a onda, ouvindo | |
| as saudações e os cochichos. No adro, onde se fez claro, parei e | |
| olhei para todos. Vi então uma moça e um homem, que saíam da egreja e | |
| pararam; e a moça olhava para mim falando ao homem, e o homem olhava | |
| para mim, ouvindo a moça. E chegaram-me estas palavras: | |
| --Mas que queres? | |
| --Queria saber della; papae pergunte. | |
| Era sinhásinha Sancha, a companheira de collegio de Capitú, que | |
| queria noticias de minha mãe. O pae veiu a mim; disse-lhe que estava | |
| restabelecida. Depois saimos, mostrou-me a casa delle, e, como eu vinha | |
| na mesma direcção, viemos juntos. Gurgel era homem de quarenta annos ou | |
| pouco mais, com propensão a engrossar o ventre; era muito obsequioso; | |
| chegando á porta da casa, quiz por força que eu fosse almoçar com elle. | |
| --Obrigado; mamãe espera-me. | |
| --Manda-se lá um preto dizer que o senhor fica almoçando, e irá mais | |
| tarde. | |
| --Venho outro dia. | |
| Sinhásinha Sancha, voltada para o pae, ouvia e esperava. Não era feia; | |
| só se lhe podia notar a semelhança do nariz, que tambem acabava grosso, | |
| mas ha feições que tiram a graça de uns para dal-a a outros. Vestia | |
| simples. Gurgel era viuvo e morria pela filha. Como eu recusasse o | |
| almoço, quiz que descançasse alguns minutos. Não pude recusar e subi. | |
| Quis saber a minha edade, os meus estudos, a minha fé, e dava-me | |
| conselhos para o caso de vir a ser padre; disse-me o numero do armazem, | |
| rua da Quitanda. Emfim, despedi-me, veiu ao patamar da escada; a filha | |
| deu-me rocommendações para Capitú e para minha mãe. Da rua olhei para | |
| cima; o pae estava á janella e fez-me um gosto largo de despedida. | |
| LXXI | |
| Visita de Escobar. | |
| Em casa, tinham já mentido dizendo a minha mãe que eu voltára e estava | |
| mudando de roupa. | |
| «A missa das oito já ha de ter acabado... Bentinho devia estar de | |
| volta... Teria acontecido alguma cousa, mano Cosme?... Mandem ver...» | |
| Assim falava ella, de minuto a minuto, mas eu entrei e commigo a | |
| tranquillidade. | |
| Era o dia das boas sensações. Escobar foi visitar-me e saber da saude | |
| de minha mãe. Nunca me visitára até alli, nem as nossas relações | |
| estavam já tão estreitas, como vieram a ser depois; mas sabendo a razão | |
| da minha saida, tres dias antes, aproveitou o domingo para ir ter | |
| commigo e perguntar se continuava o perigo ou não. Quando lhe disse que | |
| não, respirou. | |
| --Tive receio, disse elle. | |
| --Os outros souberam? | |
| --Parece que sim: alguns souberam. | |
| Tio Cosme e José Dias gostaram do moço; o aggregado disse-lhe que vira | |
| uma vez o pae no Rio de Janeiro. Escobar era muito polido; e, comquanto | |
| falasse mais do que veiu a falar depois, ainda assim não era tanto como | |
| os rapazes da nossa edade; naquelle dia achei-o um pouco mais expansivo | |
| que de costume. Tio Cosme quiz que jantasse comnosco. Escobar reflectiu | |
| um instante e acabou dizendo que o correspondente do pae esperava por | |
| elle. Eu, lembrando-me das palavras do Gurgel, repeti-as: | |
| --Manda-se lá um preto dizer que o senhor janta aqui, e irá depois. | |
| --Tanto incommodo! | |
| --Incommodo nenhum, interveiu tio Cosme. | |
| Escobar acceitou, e jantou. Notei que os movimentos rápidos que tinha e | |
| dominava na aula tambem os dominava agora, na sala como na mesa. A hora | |
| que passou commigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe os poucos livros | |
| que possuia. Gostou muito do retrato de meu pae; depois de alguns | |
| instantes de contemplação, virou-se e disse-me: | |
| --Vê-se que era um coração puro! | |
| Os olhos de Escobar, claros como já disse, eram dulcissimos; assim | |
| os definiu José Dias, depois que elle saiu, e mantenho esta palavra, | |
| apesar dos quarenta annos que traz em cima de si. Nisto não houve | |
| exageração do aggregado. A cara rapada mostrava uma pelle alva e lisa. | |
| A testa é que era um pouco baixa, vindo a risca do cabello quasi em | |
| cima da sobrancelha esquerda; mas tinha sempre a altura necessaria | |
| para não affrontar as outras feições, nem diminuir a graça dellas. | |
| Realmente, era interessante de rosto, a bocca fina e chocarreira, o | |
| nariz curvo e delgado. Tinha o séstro de sacudir o hombro direito, de | |
| quando em quando, e veiu a perdel-o, desde que um de nós lh'o notou | |
| um dia no seminario; primeiro exemplo que vi de que um homem póde | |
| corrigir-se muito bem dos defeitos miudos. | |
| Nunca deixei de sentir tal ou qual desvanecimento em que os meus amigos | |
| agradassem a todos. Em casa, ficaram querendo bem a Escobar; a mesma | |
| prima Justina achou que era um moço muito apreciavel, apesar... Apesar | |
| de que? perguntou-lhe José Dias, vendo que ella não acabava a phrase. | |
| Não teve resposta, nem podia tel-a; prima Justina provavelmente não | |
| viu defeito claro ou importante no nosso hospede; o _apesar_ era uma | |
| especie de resalva para algum que lhe viesse a descobrir um dia; ou | |
| então foi obra de uso velho, que a levou a restringir, onde não achára | |
| restricção. | |
| Escobar despediu-se logo depois de jantar; fui leval-o á porta, | |
| onde esperámos a passagem de um omnibus. Disse-me que o armazem do | |
| correspondente era na rua dos Pescadores, e ficava aberto até ás nove | |
| horas: elle é que se não queria demorar fóra. Separámo-nos com muito | |
| affecto: elle, de dentro do omnibus, ainda me disse adeus, com a mão. | |
| Conservei-me á porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para traz, mas | |
| não olhou. | |
| --Que amigo é esse tamanho? perguntou alguem de uma janella ao pé. | |
| Não é preciso dizer que era Capitú. São cousas que se adivinham na | |
| vida, como nos livros, sejam romances, sejam historias verdadeiras. Era | |
| Capitú, que nos espreitara desde algum tempo, por dentro da veneziana, | |
| e agora abrira inteiramente a janella, e apparecera. Viu as nossas | |
| despedidas tão rasgadas e affectuosas, e quiz saber quem era que me | |
| merecia tanto. | |
| --É o Escobar, disse eu indo pôr-me embaixo da janella, a olhar para | |
| cima. | |
| LXXII | |
| Uma reforma dramatica. | |
| Nem eu, nem tu, nem ella, nem qualquer outra pessoa desta historia | |
| poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os | |
| dramaturgos, não annuncia as peripecias nem o desfecho. Elles chegam a | |
| seu tempo, até que o panno cae, apagam-se as luzes, e os espectadores | |
| vão dormir. Nesse genero ha porventura alguma cousa que reformar, e | |
| eu proporia, como ensaio, que as peças começassem pelo fim. Othello | |
| mataria a si e a Desdemona no primeiro acto, os tres seguintes seriam | |
| dados á acção lenta e decrescente do ciume, e o ultimo ficaria só com | |
| as scenas iniciaes da ameaça dos turcos, as explicações de Othello e | |
| Desdemona, e o bom conselho do fino Iago: «Mette dinheiro na bolsa.» | |
| Desta maneira, o espectador, por um lado, acharia no theatro a charada | |
| habitual que os periodicos lhe dão, porque os ultimos actos explicariam | |
| o desfecho do primeiro, especie de conceito, e, por outro lado, ia | |
| para a cama com uma boa impressão de ternura e de amor: | |
| Ella amou o que me affligira, | |
| Eu amei a piedade della. | |
| LXXIII | |
| O contra-regra. | |
| O destino não é só dramaturgo, é tambem o seu proprio contra-regra, | |
| isto é, designa a entrada dos personagens em scena, dá-lhes as cartas | |
| e outros objectos, e executa dentro os signaes correspondentes | |
| ao dialogo, uma trovoada, um carro, um tiro. Quando eu era moço, | |
| representou-se ahi, em não sei que theatro, um drama que acabava pelo | |
| juizo final. O principal personagem era Ashaverus, que no ultimo | |
| quadro concluia um monologo por esta exclamação: «Ouço a trombeta do | |
| archanjo!» Não se ouviu trombeta nenhuma. Ashaverus, envergonhado, | |
| repetiu a palavra, agora mais alto, para advertir o contra-regra, mas | |
| ainda nada. Então caminhou para o fundo, disfarçamente tragico, mas | |
| effectivamente com o fim de falar ao bastidor, e dizer em voz surda:** | |
| «O piston! o piston! o piston!» O publico ouviu esta palavra e desatou | |
| a rir, até que, quando a trombeta soou devéras, e Ashaverus bradou | |
| pela terceira vez que era a do archanjo, um gaiato da platéa corrigiu | |
| cá debaixo: «Não, senhor, é o piston do archanjo!» | |
| Assim se explicam a minha estada debaixo da janella de Capitú e a | |
| passagem de um cavalleiro, um _dandy_, como então diziamos. Montava | |
| um bello cavallo alazão, firme na sella, redea na mão esquerda, a | |
| direita á cinta, botas de verniz, figura e postura esbeltas: a cara | |
| não me era desconhecida. Tinham passado outros, e ainda outros viriam | |
| atraz; todos iam ás suas namoradas. Era uso do tempo namorar a cavallo. | |
| Relê Alencar: «Porque um estudante (dizia um dos seus personagens de | |
| theatro de 1858) não póde estar sem estas duas cousas, um cavallo e uma | |
| namorada.» Relê Alvares de Azevedo. Uma das suas poesias é destinada | |
| a contar (1851) que residia em Catumby, e, para ver a namorada no | |
| Cattete, alugara um cavallo por trez mil reis... Trez mil reis! tudo se | |
| perde na noite dos tempos! | |
| Ora, o _dandy_ do cavallo baio não passou como os outros; era a | |
| trombeta do juizo final e soou a tempo; assim faz o Destino, que é o | |
| seu proprio contra-regra. O cavalleiro não se contentou de ir andando, | |
| mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitú, e olhou | |
| para Capitú, e Capitú para elle; o cavallo andava, a cabeça do homem | |
| deixava-se ir voltando para traz. Tal foi o segundo dente de ciume que | |
| me mordeu. A rigor, era natural admirar as bellas figuras; mas aquelle | |
| sujeito costumava pagar alli, ás tardes; morava no antigo Campo da | |
| Acclamação, e depois... e depois... Vão lá raciocinar com um coração de | |
| braza, como era o meu! | |
| Nem disse nada a Capitú; saí da rua á pressa, enfiei pelo meu corredor, | |
| e, quando dei por mim, estava na sala de visitas. | |
| LXXIV | |
| A presilha. | |
| Na sala de visitas, tio Cosme e José Dias conversavam, um sentado, | |
| outro andando e parando. A vista de José Dias lembrou-me o que elle | |
| me disséra no seminario: «Aquillo emquanto não pegar algum peralta da | |
| visinhança que case com ella....» Era certamente allusão ao cavalleiro. | |
| Tal recordação aggravou a impressão que eu trazia da rua; mas não | |
| seria essa palavra, inconscientemente guardada, que me dispoz a crer | |
| na malicia dos seus olhares? A vontade que tive foi pegar em José Dias | |
| pela gola, leval-o ao corredor e perguntar-lhe se falara de verdade ou | |
| por hypothese; mas José Dias, que parára ao ver-me entrar, continuou a | |
| andar e a falar. Eu, impaciente, queria ir á casa ao pé, imaginava que | |
| Capitú saisse da janella assustada e não tardasse a apparecer, para | |
| indagar e explicar.... E os dous falavam, até que tio Cosme ergueu-se | |
| para ir ver a doente, e José Dias veiu ter commigo, ao vão da outra | |
| janella. | |
| Ha um instante tinha eu desejo de lhe perguntar o que havia entre | |
| Capitú e os peraltas do bairro; agora, imaginando que vinha justamente | |
| dizer-m'o, fiquei com medo de ouvil-o. Quiz tapar-lhe a bocca. José | |
| Dias viu no meu rosto algum signal differente da expressão habitual, e | |
| perguntou-me com interesse: | |
| --Que é, Bentinho? | |
| Para não fital-o, deixei cair os olhos. Os olhos, caindo, viram que uma | |
| das presilhas das calças do aggregado estava desabotoada, e, como elle | |
| insistisse em saber o que é que eu tinha, respondi apontando com o dedo: | |
| --Olhe a presilha, abotoe a presilha. | |
| José Dias inclinou-se, eu saí correndo. | |
| LXXV | |
| O desespero. | |
| Escapei ao aggregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto della, mas | |
| não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atraz de mim. | |
| Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me á cama, e rolava commigo, | |
| e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não ir | |
| ver Capitú aquella tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez. | |
| Via-me já ordenado, deante d'ella, que choraria de arrependimento e me | |
| pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria mais que desprezo, | |
| muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes | |
| dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre elles. | |
| Da cama ouvia voz della, que viera passar o resto da tarde com minha | |
| mãe, e naturalmente commigo, como das outras vezes; mas, por maior que | |
| fosse o abalo que me deu, não me fez sair do quarto. Capitú ria alto, | |
| falava alto, como se me avisasse; eu continuava surdo, a sós commigo | |
| e o meu desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no | |
| pescoço, enterral-as bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue.... | |
| LXXVI | |
| Explicação. | |
| Ao fim de algum tempo, estava socegado, mas abatido. Como me achasse | |
| estirado na cama, com os olhos no tecto, lembrou-me a recommendação que | |
| minha mãe fazia de me não deitar depois de jantar para evitar alguma | |
| congestão. Ergui-me de golpe, mas não saí do quarto. Capitú ria agora | |
| menos e falava mais baixo; estaria afflicta com a minha reclusão, mas | |
| nem por isso me abalou. | |
| Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte não estava melhor, estava | |
| differente. A minha dòr agora complicava-se do receio de haver ido além | |
| do que convinha, deixando de examinar o negocio. Posto que a cabeça | |
| me doesse um pouco, simulei maior incommodo, com o fim de não ir ao | |
| seminario e falar a Capitú. Podia estar zangada commigo, podia não | |
| querer-me agora e preferir o cavalleiro. Quiz resolver tudo, ouvil-a e | |
| julgal-a; podia ser que tivesse defesa e explicação. | |
| Tinha ambas as cousas. Quando soube a causa da minha reclusão da | |
| vespera, disse-me que era grande injuria que lhe fazia; não podia | |
| crer que depois da nossa troca de juramentos, tão leviana a julgasse | |
| que pudesse crer.... E aqui romperam-lhe lagrimas, e fez um gesto de | |
| separação; mas eu acudi de prompto, peguei-lhe das mãos e beijei-as | |
| com tanta alma e calor que as senti estremecer. Enxugou os olhos com | |
| os dedos, eu os beijei de novo, por elles e pelas lagrimas; depois | |
| suspirou, depois abanou a cabeça. Confessou-me que não conhecia o | |
| rapaz, senão como os outros que alli passavam ás tardes, a cavallo ou a | |
| pé. Se olhara para elle, era prova exactamente de não haver nada entre | |
| ambos; se houvesse, era natural dissimular. | |
| --E que poderia haver, se elle vae casar? concluiu. | |
| --Vae casar? | |
| Ia casar, disse-me com quem, com uma moça da rua dos Barbonos. Esta | |
| razão quadrou-me mais que tudo, e ella o sentiu no meu gesto; nem por | |
| isso deixou de dizer que, para evitar nova equivocação, deixaria de ir | |
| mais á janella. | |
| --Não! não! não! não lhe peço isto! | |
| Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, á primeira | |
| suspeita da minha parte, tudo estaria dissolvido entro nós. Acceitei a | |
| ameaça, e jurei que nunca a haveria de cumprir: era a primeira suspeita | |
| e a ultima. | |
| LXXVII | |
| Prazer das dôres velhas. | |
| Contando aquella crise do meu amor adolescente, sinto uma cousa que não | |
| sei se explico bem, e é que as dôres daquella quadra, a tal ponto se | |
| espiritualisaram com o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é | |
| claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros. A verdade é que | |
| sinto um gosto particular em referir tal aborrecimento, quando é certo | |
| que elle me lembra outros que não quizera lembrar por nada. | |
| LXXVIII | |
| Segredo por segredo. | |
| De resto, naquelle mesmo tempo senti tal ou qual necessidade de contar | |
| a alguem o que se passava entre mim e Capitú. Não referi tudo, mas só | |
| uma parte, e foi Escobar que a recebeu. Quando voltei ao seminario, | |
| na quarta-feira, achei-o inquieto; disse-me que era sua intenção ir | |
| ver-me, se eu me demorasse mais um dia em casa. Perguntava-me com | |
| interesse o que é que tivera, e se estava bom de todo. | |
| --Estou. | |
| Ouvia, espetando-me os olhos. Tres dias depois disse que me estavam | |
| achando muito distrahido; era bom disfarçar o mais que pudesse. Elle, á | |
| sua parte, tinha razões para andar distrahido tambem, mas buscava ficar | |
| attento. | |
| --Então parece-lhe....? | |
| --Sim, você ás vezes está que não ouve nada, olhando para hontem; | |
| disfarce, Santiago. | |
| --Tenho motivos.... | |
| --Creio; ninguem se distrae á toa. | |
| --Escobar.... | |
| Hesitei; elle esperou. | |
| --Que é? | |
| --Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo tambem; aqui no seminario | |
| você é a pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fóra, a não | |
| ser a gente da familia, não tenho propriamente um amigo. | |
| --Se eu disser a mesma cousa, retorquiu elle sorrindo, perde a graça; | |
| parece que estou repetindo. Mas a verdade é que não tenho aqui relações | |
| com ninguem, você é o primeiro e creio que já notaram; mas eu não me | |
| importo com isso. | |
| Commovido, senti que a voz se me precipitava da garganta. | |
| --Escobar, você é capaz de guardar um segredo? | |
| --Você que pergunta é porque duvida, e nesse caso.... | |
| --Desculpe, é um modo de falar. Eu sei que é moço serio, e faço de | |
| conta que me confesso a um padre. | |
| --Se precisa de absolvição, está absolvido. | |
| --Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, o | |
| esperam; mas eu não posso ser padre. | |
| --Nem eu, Santiago. | |
| --Nem você? | |
| --Segredo por segredo; tambem eu tenho o proposito de não acabar o | |
| curso; meu desejo é o commercio, mas não diga nada, absolutamente | |
| nada; fica só entre nós. E não é que eu não seja religioso; sou | |
| religioso, mas o commercio é a minha paixão. | |
| --Só isso? | |
| --Que mais ha de ser? | |
| Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidencia, | |
| tão escassa e surda, que não a ouvi eu mesmo; sei porém que disse «uma | |
| pessoa...» com reticencia. Uma pessoa....? Não foi preciso mais para | |
| que elle entendesse. Uma pessoa devia ser uma moça. Nem cuides que | |
| pasmou de me ver namorado; achou até natural e espetou-me outra vez os | |
| olhos. Então contei-lhe por alto o que podia, mas demoradamente para | |
| ter o gosto de repisar o assumpto. Escobar escutava com interesse; no | |
| fim da nossa conversação, declarou-me que era segredo enterrado em | |
| cemiterio. Deu-me de conselho que não me fizesse padre. Não podia levar | |
| para a egreja um coração que não era do ceu, mas da terra; seria um mau | |
| padre, nem seria padre. Ao contrario. Deus protegia os sinceros; uma | |
| vez que eu só podia servil-o no mundo, ahi me cumpria ficar. | |
| Não calculas o prazer que me deu a confidencia que lhe fiz. Era como | |
| que uma felicidade mais. Aquelle coração moço que me ouvia e me dava | |
| razão, trazia a este mundo um aspecto extraordinario. Era um grande e | |
| bello mundo, a vida uma carreira excellente, e eu nem mais nem menos um | |
| mimoso do ceu; eis a minha sensação. Nota que eu não lhe disse tudo, | |
| nem o melhor; não lhe referi o capitulo do penteado, por exemplo, nem | |
| outros assim; mas o contado era muito. | |
| Que voltámos ao assumpto, não é preciso dizel-o. Voltámos uma e muitas | |
| vezes; eu louvava as qualidades moraes de Capitú, materia adequada á | |
| admiração de um seminarista, a simpleza, a modestia, o amor do trabalho | |
| e os costumes religiosos. Não lhe tocava nas graças physicas, nem elle | |
| me perguntava por ellas; apenas insinuei a conveniencia de a conhecer | |
| de vista. | |
| --Agora não é possivel, disse-lhe na primeira semana, ao voltar de | |
| casa; Capitú vae passar uns dias com uma amiga da rua dos Invalidos. | |
| Quando ella vier, você irá lá; mas póde ir antes, póde ir sempre; | |
| porque não foi hontem jantar commigo? | |
| --Você não me convidou. | |
| --Pois precisa convidar? Lá em casa todos ficaram gostando muito de | |
| você. | |
| --Tambem eu fiquei gostando de todos, mas se é possivel fazer | |
| distincção, confesso-lhe que sua mãe é uma senhora adoravel. | |
| --Não é verdade? retorqui cheio de alvoroço. | |
| LXXIX | |
| Vamos ao capitulo. | |
| Com effeito, gostei de ouvil-o falar assim. Sabes a opinião que eu | |
| tinha de minha mãe. Ainda agora, depois de interromper esta linha para | |
| mirar-lhe o retrato que pende da parede, acho que trazia no rosto | |
| impressa aquella qualidade. Nem de outro modo se explica a opinião de | |
| Escobar, que apenas trocara com ella quatro palavras. Uma só bastava a | |
| penetrar-lhe a essencia intima; sim, sim, minha mãe era adoravel. Por | |
| mais que me estivesse então obrigando a uma carreira que eu não queria, | |
| não podia deixar de sentir que era adoravel, como uma santa. | |
| E por ventura era certo que me obrigava á carreira ecclesiastica? Aqui | |
| chego a um ponto, que esperei viesse depois, tanto que já pesquizava em | |
| que altura lhe daria um capitulo. Realmente, não cabia dizer agora o | |
| que só mais tarde presumi descobrir; mas, uma vez que toquei no ponto, | |
| melhor é acabar com elle. É grave e complexo, delicado e subtil, um | |
| destes em que o autor tem de attender ao filho, e o filho ha de ouvir | |
| o autor, para que um e outro digam a verdade, só a verdade, mas toda a | |
| verdade. Cabe ainda notar que esse ponto é que torna justamente a santa | |
| mais adoravel, sem prejuizo (ao contrario!) da parte humana e terrestre | |
| que havia nella. Basta de prefacio ao capitulo; vamos ao capitulo. | |
| LXXX | |
| Venhamos ao capitulo. | |
| Venhamos ao capitulo. Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das | |
| suas praticas religiosas, e da fé pura que as animava. Nem ignoras que | |
| a minha carreira ecclesiastica era objecto de promessa feita quando | |
| fui concebido. Tudo está contado opportunamente. Outrosim, sabes que | |
| para o fim de apertar o vinculo moral da obrigação, confiou os seus | |
| projectos e motivos a parentes e familiares. A promessa, feita com | |
| fervor, acceita com misericordia, foi guardada por ella, com alegria, | |
| no mais intimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no | |
| leite que me deu a mamar. Meu pae, se vivesse, é possivel que alterasse | |
| os planos, e, como tinha a vocação da politica, é provavel que me | |
| encaminhasse somente á politica, embora os dous officios não fossem nem | |
| sejam inconciliaveis, e mais de um padre entre na luta dos partidos e | |
| no governo dos homens. Mas meu pae morrera sem saber nada, e ella ficou | |
| deante do contracto, como unica devedora. | |
| Um dos aphorismos de Franklin é que, para quem tem de pagar na paschoa, | |
| a quaresma é curta. A nossa quaresma não foi mais longa que as outras, | |
| e minha mãe, posto me mandasse ensinar latim e doutrina, começou a | |
| adiar a minha entrada no seminario. É o que se chama, commercialmente | |
| falando, reformar uma lettra. O credor era archi-millionario, não | |
| dependia daquella quantia para comer, e consentiu nas transferencias de | |
| pagamento, sem sequer aggravar a taxa do juro. Um dia, porém, um dos | |
| familiares que serviam de endossantes da letra, falou da necessidade de | |
| entregar o preço ajustado; está n'um dos capitulos primeiros. Minha mãe | |
| concordou e recolhi-me a S. José. | |
| Ora, nesse mesmo capitulo, verteu ella umas lagrimas, que enxugou sem | |
| explicar, e que nenhum dos presentes, nem tio Cosme, mau prima Justina, | |
| nem o aggregado José Dias entendeu absolutamente; eu, que estava atraz | |
| da porta, não as entendi mais que elles. Bem examinadas, apesar da | |
| distancia, vê-se que eram saudades prévias, a magoa da separação,--e | |
| póde ser tambem (é o principio do ponto), póde ser que arrependimento | |
| da promessa. Catholica e devota, sentia muito bem que as promessas | |
| se cumprem; a questão é se é opportuno e adequado fazel-as todas, e | |
| naturalmente inclinava-se á negativa. Porque é que Deus a puniria, | |
| negando-lhe um segundo filho? A vontade divina podia ser a minha vida, | |
| sem necessidade de lh'a dedicar _ab ovo._ Era um raciocinio tardio; | |
| devia ter sido feito no dia em que fui gerado. Em todo caso, era uma | |
| conclusão primeira; mas, não bastando concluir para destruir, tudo se | |
| manteve, e eu fui para o seminario. | |
| Um cochilo da fé teria resolvido a questão a meu favor, mas a fé velava | |
| com os seus grandes olhos ingenuos. Minha mãe faria, se pudesse, | |
| uma troca de promessa, dando parte dos seus annos para conservar-me | |
| comsigo, fóra do clero, casado e pae; é o que presumo, assim como | |
| supponho que rejeitou tal ideia, por lhe parecer uma deslealdade. Assim | |
| a senti sempre na corrente da vida ordinaria. | |
| Succedeu que a minha ausencia foi logo temperada pela assiduidade de | |
| Capitú. Esta começou a fazer-se-lhe necessaria. Pouco a pouco veiu-lhe | |
| a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto | |
| annunciado), a esperança de que o nosso amor, tornando-me absolutamente | |
| incompativel com o seminario, me levasse a não ficar lá nem por Deus | |
| nem pelo diabo, esta esperança intima e secreta entrou a invadir o | |
| coração de minha mãe. Neste caso, eu romperia o contracto sem que ella | |
| tivesse culpa. Ella ficava commigo sem acto propriamente seu. Era como | |
| se, tendo confiado a alguem a importancia de uma divida para leval-a | |
| ao credor, o portador guardasse o dinheiro comsigo e não levasse nada. | |
| Na vida commum, o acto de terceiro não desobriga o contractante; mas a | |
| vantagem de contractar com o ceu é que intenção vale dinheiro. | |
| Has de ter tido conflictos parecidos com esse, e, se és religioso, | |
| haverás buscado alguma vez conciliar o ceu e a terra, por modo identico | |
| ou analogo. O ceu e a terra acabam conciliando-se; elles são quasi | |
| irmãos gemeos, tendo o ceu sido feito no segundo dia e a terra no | |
| terceiro. Como Abrahão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, | |
| e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutello. E atou Isaac | |
| em cima do feixe de lenha, pegou do cutello e levantou-o ao alto. No | |
| momento de fazel-o cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do | |
| Senhor: «Não faças mal algum a teu filho; conheci que temes a Deus.» | |
| Tal seria a esperança secreta de minha mãe. | |
| Capitú era naturalmente o anjo da Escriptura. A verdade é que minha mãe | |
| não podia tel-a agora longe de si. A affeição crescente era manifesta | |
| por actos extraordinarios. Capitú passou a ser a flôr da casa, o sol | |
| das manhãs, o frescor das tardes, a lua das noites; lá vivia horas e | |
| horas, ouvindo, falando e cantando. Minha mãe apalpava-lhe o coração, | |
| revolvia-lhe os olhos, e o meu nome era entre ambas como a senha da | |
| vida futura. | |
| LXXXI | |
| Uma palavra. | |
| Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui | |
| uma palavra de minha mãe. Agora se entenderá que ella me dissesse, no | |
| primeiro sabbado, quando eu cheguei a casa, e soube que Capitú estava | |
| na rua dos Invalidos, com Sinhásinha Gurgel. | |
| --Porque não vaes vel-a? Não me disseste que o pae de Sancha te | |
| offereceu a casa? | |
| --Offereceu. | |
| --Pois então? Mas é se queres. Capitú devia ter voltado hoje para | |
| acabar um trabalho commigo; certamente a amiga pediu-lhe que dormisse | |
| lá. | |
| --Talvez ficassem namorando, insinuou prima Justina. | |
| Não a matei por não ter a mão ferro nem corda, pistola nem punhal; mas | |
| os olhos que lhe deitei, se pudessem matar, teriam supprido tudo. Um | |
| dos erros da Providencia foi deixar ao homem unicamente os braços e | |
| os dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de | |
| defesa. Os olhos bastavam ao primeiro effeito. Um mover delles faria | |
| parar ou cair um inimigo ou um rival, exerceriam vingança prompta, | |
| com este accressimo que, para desnortear a justiça, os mesmos olhos | |
| matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a victima. | |
| Prima Justina escapou aos meus; eu é que não escapei ao effeito da | |
| insinuação, e no domingo, ás onze horas, corri á rua dos Invalidos. | |
| O pae de Sancha recebeu-me em desalinho e triste. A filha estava | |
| enferma; caira na vespera com uma febre, que se ia aggravando. Como | |
| elle queria muito á filha, pensava já vel-a morta, e annunciou-me que | |
| se mataria tambem. Eis aqui um capitulo funebre como um cemiterio, | |
| mortes, suicidios e assassinatos. Eu anciava por um raio de luz clara e | |
| ceu azul. Foi Capitú que os trouxe á porta da sala, vindo dizer ao pae | |
| de Sancha que a filha o mandara chamar. | |
| --Está peor? perguntou Gurgel assustado. | |
| --Não, senhor, mas quer falar-lhe. | |
| --Fique aqui um bocadinho, disse-lhe elle; e voltando-se para mim: É a | |
| enfermeira de Sancha, que não quer outra; eu já volto. | |
| Capitú trazia signaes de fadiga e commoção, mas tão depressa me viu, | |
| ficou toda outra, a mocinha de sempre, fresca e lepida, não menos que | |
| espantada. Custou-lhe a crer que fosse eu. Falou-me, quiz que lhe | |
| falasse, e effectivamente conversámos por alguns minutos, mas tão | |
| baixo e abafado que nem as paredes ouviram, ellas que tèm ouvidos. De | |
| resto, se ellas ouviram algo, nada entenderam, nem ellas nem os moveis, | |
| que estavam tão tristes como o dono. | |
| LXXXII | |
| O canapé. | |
| Delles, só o canapé pareceu haver comprehendido a nossa situação | |
| moral, visto que nos offereceu os serviços da sua palhinha, com tal | |
| insistencia que os acceitámos e nos sentámos. Data dahi a opinião | |
| particular que tenho do canapé. Elle faz alliar a intimidade e o | |
| decoro, e mostra a casa toda sem sair da sala. Dous homens sentados | |
| nelle pódem debater o destino de um imperio, e duas mulheres a graça | |
| de um vestido; mas, um homem e uma mulher só por aberração das leis | |
| naturaes dirão outra cousa que não seja de si mesmos. Foi o que | |
| fizemos, Capitú e eu. Vagamente lembra-me que lhe perguntei se a demora | |
| alli seria grande... | |
| --Não sei; a febre parece que cede... mas... | |
| Tambem me lembra, vagamente, que lhe expliquei a minha visita á rua dos | |
| Invalidos, com a pura verdade, isto é, a conselho de minha mãe. | |
| --Conselho della? murmurou Capitú. | |
| E accrescentou com os olhos, que brilhavam extraordinariamente: | |
| --Seremos felizes! | |
| Repeti esta palavras, com os simples dedos, apertando os della. O | |
| canapé, quer visse ou não, continuou a prestar os seus serviços ás | |
| nossas mãos presas e ás nossas cabeças juntas ou quasi juntas. | |
| LXXXIII | |
| O retrato. | |
| Gurgel tornou á sala e disse a Capitú que a filha chamava por ella. | |
| Eu levantei-me depressa e não achei compostura; mettia os olhos pelas | |
| cadeiras. Ao contrario, Capitú ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe | |
| se a febre augmentára. | |
| --Não, disse elle. | |
| Nem sobresalto nem nada, nenhum ar de mysterio da parte de Capitú; | |
| voltou-se para mim, e disse-me que levasse lembranças a minha mãe e | |
| a prima Justina, e que até breve; estendeu-me a mão e enfiou pelo | |
| corredor. Todas as minhas invejas foram com ella. Como era possivel que | |
| Capitú se governasse tão facilmente e eu não? | |
| --Está uma moça, observou Gurgel olhando tambem para ella. | |
| Murmurei que sim. Na verdade, Capitú ia crescendo ás carreiras, as | |
| fórmas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; | |
| moralmente, a mesma cousa. Era mulher por dentro e por fóra, mulher á | |
| direita e á esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até á | |
| cabeça. Esse arvorecer era mais apressado, agora que eu a via de dias | |
| a dias; de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e mais cheia; | |
| os olhos pareciam ter outra reflexão, e a bocca outro imperio. Gurgel, | |
| voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato de moça, | |
| perguntou-me se Capitú era parecida com o retrato. | |
| Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião | |
| provavel do meu interlocutor, desde que a materia não me aggrava, | |
| aborrece ou impõe. Antes de examinar se effectivamente Capitú era | |
| parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então elle disse que | |
| era o retrato da mulher delle, e que as pessoas que a conheceram diziam | |
| a mesma cousa. Tambem achava que as feições eram semelhantes, a testa | |
| principalmente e os olhos. Quanto ao genio, era um; pareciam irmãs. | |
| --Finalmente, até a amizade que ella tem a Sanchinha; a mãe não era | |
| mais amiga della... Na vida ha dessas semelhanças assim exquisitas. | |
| LXXXIV | |
| Chamado. | |
| No saguão e na rua, examinei ainda commigo se effectivamente elle | |
| teria desconfiado alguma cousa, mas achei que não e puz-me a andar. Ia | |
| satisfeito com a visita, com a alegria de Capitú, com os louvores de | |
| Gurgel, a tal ponto que não acudi logo a uma voz que me chamava: | |
| --Sr. Bentinho! Sr. Bentinho! | |
| Só depois que a voz cresceu e o dono della chegou á porta é que eu | |
| parei e vi o que era e onde estava. Estava já na rua de Matacavallos. | |
| A casa era uma loja de louça, escassa e pobre; tinha as portas | |
| meio-cerradas, e a pessoa que me chamava era um pobre homem grisalho e | |
| mal vestido. | |
| --Sr. Bentinho, disse-me elle chorando; sabe que meu filho Manduca | |
| morreu? | |
| --Morreu? | |
| --Morreu ha meia hora, enterra-se amanhã. Mandei recado a sua mãe | |
| agora mesmo, e ella fez-me a caridade de mandar algumas flores para | |
| botar no caixão. Meu pobre filho! Tinha de morrer, e foi bom que | |
| morresse, coitado, mas apesar de tudo sempre doe. Que vida que elle | |
| teve!... Um dia destes ainda se lembrou do senhor, e perguntou se | |
| estava no seminario... Quer vel-o? Entre, ande vel-o... | |
| Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminuto. | |
| Quiz responder que não, que não queria ver o Manduca, e fiz até um | |
| gesto para fugir. Não era medo; n'outra occasião póde ser até que | |
| entrasse com facilidade e curiosidade, mas agora ia tão contente! Ver | |
| um defuncto ao voltar de uma namorada... Ha cousas que se não ajustam | |
| nem combinam. A simples noticia era já uma turvação grande. Às minhas | |
| ideias de ouro perderam todas a côr e o metal para se trocarem em | |
| cinza escura e feia, e não distingui mais nada. Penso que cheguei | |
| a dizer que tinha pressa, mas provavelmente não falei por palavras | |
| claras, nem sequer humanas, porque elle, encostado ao portal, abria-me | |
| espaço com o gesto, e eu, sem alma para entrar nem fugir, deixei ao | |
| corpo fazer o que pudesse, e o corpo acabou entrando. | |
| Não culpo ao homem; para elle, a cousa mais importante do momento | |
| era o filho. Mas tambem não me culpem a mim; para mim, a cousa mais | |
| importante era Capitú. O mal foi que os dous casos se conjugassem na | |
| mesma tarde, e que a morte de um viesse metter o nariz na vida do | |
| outro. Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca | |
| esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria | |
| interromper as melodias da minha alma. Porque morrer exactamente ha | |
| meia hora? Toda hora é apropriada ao obito; morre-se muito bem ás seis | |
| ou sete horas da tarde. | |
| LXXXV | |
| O defuncto. | |
| Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louça. A | |
| loja era escura, e o interior da casa menos luz tinha, agora que as | |
| janellas da área estavam cerradas. A um canto da sala de jantar vi a | |
| mãe chorando; á porta da alcova duas creanças olhavam espantadas para | |
| dentro, com o dedo na bocca. O cadaver jazia na cama; a cama... | |
| Suspendamos a penna e vamos á janella espairecer a memoria. Realmente, | |
| o quadro era feio, já pela morte, já pelo defuncto, que era horrivel... | |
| Isto aqui, sim, é outra cousa. Tudo o que vejo lá fóra respira vida, a | |
| cabra que rumina ao pé de uma carroça, a gallinha que marisca no chão | |
| da rua, o trem da Estrada Central que bufa, assobia, fumega e passa, a | |
| palmeira que investe para o ceu, e finalmente aquella torre de egreja, | |
| apesar de não ter musculos nem folhagem. Um rapaz, que alli no becco | |
| empina um papagaio de papel, não morreu nem morre, posto tambem se | |
| chame Manduca. | |
| Verdade é que o outro Manduca era mais velho que este,** pouco mais | |
| velho. Teria dezoito ou dezenove annos, mas tanto lhe darias quinze | |
| como vinte e dous, a cara não permittia trazer a edade á vista, antes a | |
| escondia nas dobras da... Vá, diga-se tudo; é morto, os seus parentes | |
| são mortos, se existe algum não é em tal evidencia que se vexe ou | |
| dôa. Diga-se tudo; Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada | |
| menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrivel. Quando | |
| eu vi, estendido na cama, o triste corpo daquelle meu visinho, fiquei | |
| apavorado e desviei os olhos. Não sei que mão occulta me compelliu a | |
| olhar outra vez, ainda que de fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, até | |
| que recuei de todo e saí do quarto. | |
| --Padeceu muito! suspirou o pae. | |
| --Coitado de Manduca! soluçava a mãe. | |
| Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi-me. O pae | |
| perguntou-me se lhe faria o favor de ir ao enterro; respondi com a | |
| verdade, que não sabia, faria o que minha mãe quizesse. E rapido saí, | |
| atravessei a loja, e saltei á rua. | |
| LXXXVI | |
| Amai, rapazes! | |
| Era tão perto, que antes de tres minutos me achei em casa. Parei | |
| no corredor, a tomar folego; buscava esquecer o defuncto, pallido | |
| e disforme, e o mais que não disse para não dar a estas paginas um | |
| aspecto repugnante, mas pódes imaginal-o. Tudo arredei da vista, em | |
| poucos segundos; bastou-me pensar na outra casa, e mais na vida e na | |
| cara fresca e lepida de Capitú... Amai, rapazes! e, principalmente, | |
| amai moças lindase graciosas; ellas dão remedio ao mal, aroma ao | |
| infecto, trocam a morte pela vida... Amai, rapazes! | |
| LXXXVII | |
| A sege. | |
| Chegara ao ultimo degrau, e uma ideia me entrou no cerebro, como se | |
| estivesse a esperar por mim, entre as grades da cancella. Ouvi de | |
| memoria as palavras do pae de Manduca pedindo-me que fosse ao enterro | |
| no dia seguinte. Parei no degrau. Reflecti um instante; sim, podia ir | |
| ao enterro, pediria a minha mãe que me alugasse um carro... | |
| Não cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que tivesse o | |
| gosto da conducção. Em pequeno, lembra-me que ia assim muita vez com | |
| minha mãe ás visitas de amizade ou de ceremonia, e á missa, se chovia. | |
| Era uma velha sege de meu pae, que ella conservou o mais que poude. O | |
| cocheiro, que era nosso escravo, tão velho como a sege, quando me via á | |
| poria, vestido, esperando minha mãe, dizia-me rindo: | |
| --Pae João vae levar nhonhô! | |
| E era raro que eu não lhe recommendasse: | |
| --João, demora muito as bestas; vae devagar. | |
| --Nhã Gloria não gosta. | |
| --Mas demora! | |
| Fica entendido que era para saborear a sege, não pela vaidade, porque | |
| ella não permittia ver as pessoas que iam dentro. Era uma velha sege | |
| obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro | |
| na frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou sair. | |
| Cada cortina tinha um oculo de vidro, por onde eu gostava de espiar | |
| para fóra. | |
| --Senta, Bentinho! | |
| --Deixa espiar, mamãe! | |
| E em pé, quando era mais pequeno, mettia a cara no vidro, e via o | |
| cocheiro com as suas grandes botas, escanchado na mula da esquerda, e | |
| segurando a redea da outra; na mão levava o chicote grosso e comprido. | |
| Tudo incommodo, as botas, o chicote e as mulas, mas elle gostava e | |
| eu tambem. Dos lados via passar as casas, lojas ou não, abertas ou | |
| fechadas, com gente ou sem ella, e na rua as pessoas que iam e vinham, | |
| ou atravessavam deante da sege, com grandes pernadas ou passos miudos. | |
| Quando havia impedimento de gente ou de animaes, a sege parava, e então | |
| o espectaculo era particularmente interessante; as pessoas paradas na | |
| calçada ou á porta das casas, olhavam para a sege e falavam entre si, | |
| naturalmente sobre quem iria dentro. Quando fui crescendo em edade | |
| imaginei que adivinhavam e diziam: «É aquella senhora da rua de | |
| Matacavallos, que tem um filho, Bentinho...» | |
| A sege ia tanto com a vida recondita de minha mãe, que quando já não | |
| havia nenhuma outra, continuámos a andar nella, e era conhecida na rua | |
| e no bairro pela «sege antiga». Afinal minha mãe consentiu em deixal-a, | |
| sem a vender logo; só abriu mão della porque as despezas de cocheira | |
| a obrigaram a isso. A razão de a guardar inutil foi exclusivamente | |
| sentimental; era a lembrança do marido. Tudo o que vinha de meu pae | |
| era conservado como um pedaço delle, um resto da pessoa, a mesma alma | |
| integral e pura. Mas o uso, esse era filho tambem do carrancismo que | |
| ella confessava aos amigos. Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos | |
| velhos habitos, velhas maneiras, velhas ideias, velhas modas. Tinha o | |
| seu museo de reliquias, pentes desusados, um trecho de mantilha, umas | |
| moedas de cobre datadas de 1824 e 1825, e, para que tudo fosse antigo, | |
| a si mesma se queria fazer velha; mas já deixei dito que, neste ponto, | |
| não alcançava tudo o que queria. | |
| LXXXVIII | |
| Um pretexto honesto. | |
| Não, a ideia de ir ao enterro não vinha da lembrança do carro e suas | |
| doçuras. A origem era outra: era porque, acompanhando o enterro no dia | |
| seguinte, não iria ao seminario, e podia fazer outra visita a Capitú, | |
| um tanto mais demorada. Eis ahi o que era. A lembrança do carro podia | |
| vir accessoriamente depois, mas a principal e immediata foi aquella. | |
| Voltaria á rua dos Invalidos, a pretexto de saber de Sinházinha Gurgel. | |
| Contava que tudo me saisse como naquelle dia, Gurgel afflicto, Capitú | |
| commigo no canapé, as mãos presas, o penteado... | |
| --Vou pedir a mamãe. | |
| Abri a cancella. Antes de transpôl-a, assim como ouvira da memoria a | |
| palavra do pae do morto, ouvi agora a da mãe, e repeti a meia voz: | |
| --Coitado de Manduca! | |
| LXXXIX | |
| A recusa. | |
| Minha mãe ficou perplexa quando lhe pedi para ir ao enterro. | |
| --Perder um dia de seminario... | |
| Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca me tinha, e depois era gente | |
| pobre... Tudo o que me lembrou dizer, disse. Prima Justina opinou pela | |
| negativa. | |
| --Você acha que não deve ir? perguntou-lhe minha mãe. | |
| --Acho que não. Que amizade é essa que eu nunca vi? | |
| Prima Justina venceu. Quando referi o caso ao aggregado, este sorriu, e | |
| disse-me que o motivo escondido da prima era provavelmente não dar ao | |
| enterro «o lustre da minha pessoa.» Fosse o que fosse, fiquei amuado; | |
| no dia seguinte, pensando no motivo, não me desagradou; mais tarde | |
| achei-lhe um sabor particular. | |
| XC | |
| A polemica. | |
| No dia seguinte, passei pela casa do defuncto, sem entrar nem | |
| parar,--ou, se parei, foi só um instante, ainda mais breve que este em | |
| que vol-o digo. Se me não engano, andei até mais depressa, receiando | |
| que me chamassem como na vespera. Uma vez que não ia ao enterro, antes | |
| longe que proximo. Fui andando e pensando no pobre diabo. | |
| Não eramos amigos, nem nos conheciamos de muito. Intimidade, que | |
| intimidade podia haver entre a doença delle e a minha saude? Tivemos | |
| relações breves e distantes. Fui pensando nellas, recordando algumas. | |
| Reduziam-se todas a uma polemica, entre nós, dous annos antes, a | |
| proposito... Mal podeis crer a que proposito foi. Foi a guerra da | |
| Criméa. | |
| Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por | |
| desfastio. Ao domingo, sobre a tarde, o pae enfiava-lhe uma camisola | |
| escura, e trazia-o para o fundo da loja, donde elle espiava um palmo da | |
| rua e a gente que passava. Era todo o seu recreio. Foi alli que o vi | |
| uma vez, e não fiquei pouco espantado; a doença ia-lhe comendo parte | |
| das carnes, os dedos queriam apertar-se; o aspecto não attrahia, de | |
| certo. Tinha eu de treze para quatorze annos. Da segunda vez que o vi | |
| alli, como falassemos da guerra da Criméa, que então ardia e andava nos | |
| jornaes, Manduca disse que os alliados haviam de vencer, e eu respondi | |
| que não. | |
| --Pois veremos, tornou elle. Só se a justiça não vencer neste mundo, o | |
| que é impossivel, e a justiça está com os alliados. | |
| --Não, senhor, a razão é dos russos. | |
| Naturalmente, iamos com o que nos diziam os jornaes da cidade, | |
| transcrevendo os de fóra, mas póde ser tambem que cada um de nós | |
| tivesse a opinião do seu temperamento. Fui sempre um tanto moscovita | |
| nas minhas ideias. Defendi o direito da Russia, Manduca fez o mesmo ao | |
| dos alliados, e o terceiro domingo em que entrei na loja tocámos outra | |
| vez no assumpto. Então Manduca propoz que trocassemos a argumentação | |
| por escripto, e na terça ou quarta-feira recebi duas folhas de papel | |
| contendo a exposição e defesa do direito dos alliados, e da integridade | |
| da Turquia, concluindo por esta phrase prophetica: | |
| «Os russos não hão de entrar em Constantinopla!» | |
| Li-a e metti-me a refutal-a. Não me recorda um só dos argumentos que | |
| empreguei, nem talvez interesse conhecel-os, agora que o seculo está | |
| a expirar; mas a ideia que me ficou delles é que eram irrespondiveis. | |
| Fui eu mesmo levar-lhe o meu papel. Fizeram-me entrar na alcova, onde | |
| elle jazia estirado na cama, mal coberto por uma colcha de retalhos. | |
| Ou gosto da polemica ou qualquer outra causa que não alcanço, não me | |
| deixou sentir toda a repugnancia que saía da cama e do doente, e o | |
| prazer com que lhe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua parte, | |
| por mais nojosa que tivesse então a cara, o sorriso que a accendou | |
| dissimulou o mal physico. A convicção com que me recebeu o papel e | |
| disse que ia ler e responderia é que não tem palavras nossas nem | |
| alheias que a digam de todo e com verdade; não era exaltada, não era | |
| ruidosa, não tinha gestos, nem a molestia os permittiria, era simples, | |
| grande, profunda, um goso infinito de victoria, antes de saber os meus | |
| argumentos. Tinha já papel, penna e tinta ao pé da cama. Dias depois | |
| recebi a réplica; não me lembra se trazia cousas novas ou não; o calor | |
| é que crescia, e o final era o mesmo: | |
| «Os russos não hão de entrar em Constantinopla!» | |
| Trepliquei, e dahi continuou por algum tempo uma polemica ardente, em | |
| que nenhum de nós cedia, defendendo cada um os seus clientes com força | |
| e brio. Manduca era mais longo e prompto que eu. Naturalmente a mim | |
| sobravam mil cousas que distrahiam, o estudo, os recreios, a familia, | |
| e a propria saude, que me chamava a outros exercicios. Manduca, salvo | |
| o palmo de rua ao domingo de tarde, tinha só esta guerra, assumpto da | |
| cidade e do mundo, mas que ninguem ia tratar com elle. O acaso dera-lhe | |
| em mim um adversario; elle, que tinha gosto á escripta, deitou-se ao | |
| debate, como a um remedio novo e radical. As horas tristes e compridas | |
| eram agora breves e alegres; os olhos desapprenderam de chorar, se por | |
| ventura choravam antes. Senti esta mudança delle nas proprias maneiras | |
| do pae e da mãe. | |
| --Não imagina como elle anda agora, depois que o senhor lhe escreve | |
| aquelles papeis, dizia-me o dono da loja, uma vez, á porta da rua. Fala | |
| e ri muito. Logo que eu mando o caixeiro levar-lhe os papeis delle, | |
| entra a indagar da resposta, e se demorará muito, e que pergunte ao | |
| moleque, quando passar. Emquanto espera, relê jornaes e toma notas. Mas | |
| tambem, apenas recebe os seus papeis, atira-se a lel-os, e começa logo | |
| a escrever a resposta. Ha occasiões em que não come ou come mal; tanto | |
| que eu queria pedir-lhe uma cousa, é que não os mande á hora do almoço | |
| ou de jantar... | |
| Fui eu que cancei primeiro. Comecei a demorar as respostas, até que não | |
| dei mais nenhuma; elle ainda teimou duas ou tres vezes depois do meu | |
| silencio, mas não recebendo contestação alguma, por fadiga tambem ou | |
| por não aborrecer, acabou de todo com as suas apologias. A ultima, como | |
| a primeira, como todas, affirmava a mesma predicção eterna: | |
| «Os russos não hão de entrar em Constantinopla!» | |
| Não entraram, effectivamente, nem então, nem depois, nem até agora. | |
| Mas a predicção será eterna? Não chegarão a entrar algum dia? Problema | |
| difficil. O proprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou tres | |
| annos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a historia, não | |
| se faz brincando. A vida delle resistiu como a Turquia; se afinal | |
| cedeu foi porque lhe faltou uma alliança como a anglo-franceza, não se | |
| podendo considerar tal o simples accordo da medicina e da pharmacia. | |
| Morreu afinal, como os Estados morrem; no nosso caso particular, a | |
| questão é saber, não se a Turquia morrerá, porque a morte não poupa a | |
| ninguem, mas se os russos entrarão algum dia em Constantinopla; essa | |
| era a questão para o meu visinho leproso, debaixo da triste, rota e | |
| infecta colcha de retalhos... | |
| XCI | |
| Achado que consola. | |
| É claro que as reflexões que ahi deixo não foram feitas então, a | |
| caminho do seminario, mas agora no gabinete do Engenho Novo. Então, | |
| não fiz propriamente nenhuma, a não ser esta: que servi de allivio um | |
| dia ao meu visinho Manduca. Hoje, pensando melhor, acho que não só | |
| servi de allivio, mas até lhe dei felicidade. E o achado consola-me; | |
| já agora não esquecerei mais que dei dous ou tres mezes de felicidade | |
| a um pobre diabo, fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. É alguma | |
| cousa na liquidação da minha vida. Se ha no outro mundo tal ou qual | |
| premio para as virtudes sem intenção, esta pagará um ou dous dos meus | |
| muitos peccados. Quanto ao Manduca, não creio que fosse peccado opinar | |
| contra a Russia, mas, se era, elle estará purgando ha quarenta annos | |
| a felicidade que alcançou em dous ou tres mezes,--donde concluirá (já | |
| tarde) que era ainda melhor haver gemido sómente, sem opinar cousa | |
| nenhuma. | |
| XCII | |
| O diabo não é tão feio como se pinta. | |
| Manduca enterrou-se sem mim. A muitas outros aconteceu a mesma cousa, | |
| sem que eu sentisse nada, mas este caso affligiu-me particularmente | |
| pela razão já dita. Tambem senti não sei que melancolia ao recordar a | |
| primeira polemica da vida, o gosto com que elle recebia os meus papeis | |
| e se propunha a refutal-os, não contando o gosto do carro... Mas o | |
| tempo apagou depressa todas essas saudades e resurreições. Nem foi só | |
| elle; duas pessoas vieram ajudal-o, Capitú, cuja imagem dormiu commigo | |
| na mesma noite, e outra que direi no capitulo que vem. O resto deste | |
| capitulo e só para pedir que, se alguem tiver de ler o meu livro com | |
| alguma attenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe | |
| de concluir que o diabo não é tão feio como se pinta. Quero dizer... | |
| Quero dizer que o meu visinho de Matacavallos, temperando o mal com | |
| a opinião anti-russa, dava á podridão das suas carnes um reflexo | |
| espiritual que as consolava. Ha consolações maiores, de certo, e uma | |
| das mais excellentes é não padecer esse nem outro mal algum, mas a | |
| natureza é tão divina que se diverte com taes contrastes, e aos mais | |
| nojentos ou mais afflictos acena com uma flòr. E talvez saia assim a | |
| flòr mais bella; o meu jardineiro affirma que as violetas, para terem | |
| um cheiro superior, hão mister de estrume de porco. Não examinei, mas | |
| deve ser verdade. | |
| XCIII | |
| Um amigo por um defuncto. | |
| Quanto á outra pessoa que teve a força obliterativa, foi o meu collega | |
| Escobar que no domingo, antes do meio dia, veiu ter a Matacavallos. Um | |
| amigo suppria assim um defuncto, e tal amigo que durante cerca de cinco | |
| minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se me não visse | |
| desde longos mezes. | |
| --Você janta commigo, Escobar? | |
| --Vim para isto mesmo. | |
| Minha mãe agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e elle respondeu com | |
| muita polidez, ainda que um tanto atado, como se carecesse de palavra | |
| prompta. Já viste que não era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o | |
| homem não é sempre o mesmo em todos os instantes. O que elle disse, em | |
| resumo, foi que me estimava pelas minhas boas qualidades e aprimorada | |
| educação; no seminario todos me queriam bem, nem podia deixar de ser | |
| assim, accrescentou. Insistia na educação, nos bons exemplos, «na doce | |
| e rara mãe» que o ceu me deu... Tudo isso com a voz engasgada e tremula. | |
| Todos ficaram gostando delle. Eu estava tão contente como se Escobar | |
| fosse invenção minha. José Dias desfechou-lhe dous superlativos, tio | |
| Cosme dous capotes, e prima Justina não achou tacha que lhe pôr; | |
| depois, sim, no segundo ou terceiro domingo, veiu ella confessar-nos | |
| que o meu amigo Escobar era um tanto mettidiço e tinha uns olhos | |
| policiaes a que não escapava nada. | |
| --São os olhos delle, expliquei. | |
| --Nem eu digo que sejam de outro. | |
| --São olhos reflectidos, opinou tio Cosme. | |
| --Seguramente, acudiu José Dias, entretanto, póde ser que a senhora D. | |
| Justina tenha alguma razão. A verdade é que uma cousa não impede outra, | |
| e a reflexão casa-se muito bem á curiosidade natural. Parece curioso, | |
| isso parece, mas... | |
| --A mim parece-me um mocinho muito serio, disse minha mãe. | |
| --Justamente! confirmou José Dias para não discordar della. | |
| Quando eu referi a Escobar aquella opinião de minha mãe (sem lhe contar | |
| as outras naturalmente) vi que o prazer delle foi extraordinario. | |
| Agradeceu, dizendo que eram bondades, e elogiou tambem minha mãe, | |
| senhora grave, distincta e moça, muito moça... Que edade teria? | |
| --Já fez quarenta, respondi eu vagam ente por vaidade. | |
| --Não é possivel! exclamou Escobar. Quarenta annos! Nem parece trinta; | |
| está muito moça e bonita. Tambem a alguem ha de você sair, com esses | |
| olhos que Deus lhe deu; são exactamente os della. Enviuvou ha muitos | |
| annos? | |
| Contei-lhe o que sabia da vida della e de meu pae. Escobar escutava | |
| attento, perguntando mais, pedindo explicação das passagens omissas ou | |
| só escuras. Quando eu lhe disse que não me lembrava nada da roça, tão | |
| pequenino viera, contou-me duas ou tres reminiscencias dos seus tres | |
| annos de edade, ainda agora frescas. E não contavamos voltar á roça? | |
| --Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquelle preto que alli vae | |
| passando, é de lá. Thomaz! | |
| --Nhonhô! | |
| Estavamos na horta da minha casa, e o preto andava em serviço; | |
| chegou-se a nós e esperou. | |
| --É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está? | |
| --Está soccando milho, sim, senhor. | |
| --Você ainda se lembra da roça, Thomaz? | |
| --Alembra, sim, senhor. | |
| --Bem, vá-se embora. | |
| Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquelle José, | |
| aquelle outro Damião... | |
| --Todas as lettras do alphabeto, interrompeu Escobar. | |
| Com effeito, eram differentes lettras, e só então reparei nisto; | |
| apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes, | |
| distinguindo-se por um appellido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria | |
| Gorda, ou de nação como Pedro Benguella, Antonio Moçambique... | |
| --E estão todos aqui em casa? perguntou elle. | |
| --Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados. Não era | |
| possivel ter todos em casa. Nem são todos os da roça; a maior parte | |
| ficou lá. | |
| --O que me admira é que D. Gloria se acostumasse logo a viver em casa | |
| da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é naturalmente grande. | |
| --Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz | |
| porém que ha de morrer aqui. As outras estão alugadas. Algumas são bem | |
| grandes, como a da rua da Quitanda... | |
| --Conheço essa; é bonita. | |
| --Tem tambem no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Cattete... | |
| --Não lhe hão de faltar tectos, concluiu elle sorrindo com sympathia. | |
| Caminhámos para o fundo. Passámos o lavadouro; elle parou um instante | |
| ahi, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a proposito | |
| do asseio; depois continuámos. Quaes foram as reflexões não me lembra | |
| agora; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, elle riu tambem. A | |
| minha alegria accordava a delle, e o ceu estava tão azul, e o ar tão | |
| claro, que a natureza parecia rir tambem comnosco. São assim as boas | |
| horas deste mundo. Escobar confessou esse accordo do interno com o | |
| externo, por palavras tão finas e altas que me commoveram; depois, a | |
| proposito da belleza moral que se ajusta á physica, tornou a falar de | |
| minha mãe, «um anjo dobrado», disse elle. | |
| XCIV | |
| Ideias arithmeticas. | |
| Não digo o mais, que foi muito. Nem elle sabia só elogiar e pensar, | |
| sabia tambem calcular depressa e bem. Era das cabeças arithmeticas | |
| de Holmes (2+2=4). Não se imagina a facilidade com que elle sommava | |
| ou multiplicava de cór. A divisão, que foi sempre uma das operações | |
| difficeis para mim, era para elle como nada: cerrava um pouco os olhos, | |
| voltados para cima, e sussurrava as denominações dos algarismos: estava | |
| prompto. Isto com sete, treze, vinte algarismos. A vocação era tal que | |
| o fazia amar os proprios signaes das sommas, e tinha esta opinião que | |
| os algarismos, sendo poucos, eram muito mais conceituosos que as vinte | |
| e cinco letras do alphabeto. | |
| --Ha lettras inuteis e lettras dispensaveis, dizia elle. Que serviço | |
| diverso prestam o _d_ e o _t_? Tem quasi o mesmo som. O mesmo digo do | |
| _b_ e do _p_, o mesmo do _s_, do _c_ e do _z_, o mesmo do _k_ e do | |
| _g_, etc. São trapalhices calligraphicas. Veja os algarismos: não ha | |
| dous que façam o mesmo officio; 4 é 4, e 7 é 7. E admire a belleza com | |
| que um 4 e um 7 formam esta cousa que se exprime por 11. Agora dobre 11 | |
| e terá 22; multiplique por egual numero, dá 484, e assim por deante. | |
| Mas onde o perfeição é maior é no emprego do _zero._ O valor do _zero_ | |
| é, em si mesmo, nada; mas o officio deste signal negativo é justamente | |
| augmentar. Um 5 sósinho é um 5; ponha-lhe dous 00, é 500. Assim, o que | |
| não vale nada faz valer muito, cousa que não fazem as letras dobradas, | |
| pois eu tanto _approvo_ com um _p_ como com dous _pp._ | |
| Criado na orthographia de meus paes, custava-me a ouvir taes | |
| blasphemias, mas não ousava refutal-o. Com tudo, um dia, proferi | |
| algumas palavras de defesa, ao que elle respondeu que era um | |
| preconceito, e accrescentou que as ideias arithmeticas podiam ir ao | |
| infinito, com a vantagem que eram mais faceis de menear. Assim que, | |
| eu não era capaz de resolver de momento um problema philosophico ou | |
| linguistico, ao passo que elle podia sommar, em tres minutos, quaesquer | |
| quantias. | |
| --Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de numeros que eu não | |
| saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o numero das casas de sua | |
| mãe e os alugueis de cada uma, e se eu não disser a somma total em | |
| dous, em um minuto, enforque-me! | |
| Acceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escriptos em um | |
| papel os algarismos das casas e dos alugueis. Escobar pegou no papel, | |
| passou-os pelos olhos afim de os decorar, e emquanto eu fitava o | |
| relogio, elle erguia as pupillas, cerrava as palpebras, e sussurrava... | |
| Oh! o vento não é mais rápido! Foi dito e feito; em meio minuto | |
| bradava-me: | |
| --Dá tudo 1:070$000 mensaes. | |
| Fiquei pasmado. Considera que eram não menos de nove casas, e que os | |
| alugueis variavam de uma para outra, indo de 70$000 a 180$000. Pois | |
| tudo isto em que eu gastaria tres ou quatro minutos,--e havia de ser | |
| no papel,--fel-o Escobar de cór, brincando. Olhava-me triumphalmente, | |
| e perguntava se não era exacto. Eu, só por lhe mostrar que sim, tirei | |
| do bolso o papelinho que levava com a somma total, e mostrei-lh'o; era | |
| aquillo mesmo, nem um erro: 1:070$000. | |
| --Isto prova que as ideias arithmeticas são mais simples, e portanto | |
| mais naturaes. A natureza é simples. A arte é atrapalhada. | |
| Fiquei tão enthusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não | |
| pude deixar de abraçal-o. Era no pateo; outros seminaristas notaram a | |
| nossa effusão; um padre que estava com elles não gostou. | |
| --A modestia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos; pódem | |
| estimar-se com moderação. | |
| Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e | |
| propoz-me viver separados. Interrompi-o dizendo que não; se era | |
| inveja, tanto peor para elles. | |
| --Quebremos-lhe a castanha na bocca! | |
| --Mas... | |
| --Fiquemos ainda mais amigos que até aqui. | |
| Escobar apertou-me a mão ás escondidas, com tal força que ainda me | |
| doem os dedos. É illusão, de certo, se não é effeito das longas horas | |
| que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a penna por alguns | |
| instantes... | |
| XCV | |
| O papa. | |
| A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não lhe | |
| quiz ficar atraz. Na primeira semana disse-me este em casa: | |
| --Agora é certo que você vae sair já do seminario. | |
| --Como? | |
| --Espere até amanhã. Vou jogar com elles que me chamaram; amanhã, lá | |
| no quarto, no quintal, ou na rua, indo á missa, conto-lhe o que ha. A | |
| ideia é tão santa que não está mal no santuario. Amanhã, Bentinho. | |
| --Mas é cousa certa? | |
| --Certíssima! | |
| No dia seguinte revelou-me o mysterio. Ao primeiro aspecto, | |
| confesso que fiquei deslumbrado. Trazia uma nota de grandeza e de | |
| espiritualidade que falava aos meus olhos de seminarista. Era não | |
| menos que isto. Minha mãe, ao parecer delle, estava arrependida do que | |
| fizera, e desejaria ver-me cá fóra, mas entendia que o vinculo moral da | |
| promessa a prendia indissoluvelmente. Cumpria rompel-o, e para tanto | |
| valia a Escriptura, com o poder de desligar dado aos apostolos. Assim | |
| que, elle e eu iriamos a Roma pedir a absolvição do papa... Que me | |
| parecia? | |
| --Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexão. Póde | |
| ser um bom remedio. | |
| --É o unico, Bentinho, é o unico! Vou já hoje conversar com D. Gloria, | |
| exponho-lhe tudo, e podemos partir daqui a dous mezes, ou antes... | |
| --Melhor é falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro... | |
| --Oh! Bentinho! interrompeu o aggregado. Pensar em que? Você o que | |
| quer... Digo? não se amofina com o seu velho? Você o que quer é | |
| consultar a uma pessoa. | |
| Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitú e Escobar, mas eu neguei a pés | |
| juntos que quizesse consultar ninguem. E que pessoa, o reitor? Não era | |
| natural que lhe confiasse tal assumpto. Não, nem reitor, nem professor, | |
| nem ninguem; era só o tempo de reflectir, uma semana, no domingo daria | |
| a resposta, e desde já lhe dizia que a ideia não me parecia má. | |
| --Não? | |
| --Não. | |
| --Pois resolvamos hoje mesmo. | |
| --Não se vae a Roma brincando. | |
| --Quem tem bocca vae a Roma, e bocca no nosso caso é a moeda. Ora, | |
| você póde muito bem gastar comsigo... Commigo, não; um par de calças, | |
| tres camisas e o pão diário, não preciso mais. Serei como S. Paulo, | |
| que vivia do officio emquanto ia prégando a palavra divina. Pois eu | |
| vou, não prégal-a, mas buscal-a. Levaremos cartas do internuncio e | |
| do bispo, cartas para o nosso ministro, cartas de capuchinhos... | |
| Bem sei a objecção que se póde oppôr a esta ideia; dirão que é dado | |
| pedir a dispensa cá de longe; mas, além do mais que não digo, basta | |
| reflectir que é muito mais solemne e bonito ver entrar no Vaticano, | |
| e prostrar-se aos pés do papa o proprio objecto do favor, o levita | |
| promettido, que vae pedir para sua mãe ternissima e dulcissima a | |
| dispensa de Deus. Considere o quadro, você beijando o pé ao príncipe | |
| dos apostolos; Sua Santidade, com o sorriso evangelico, inclina-se, | |
| interroga, ouve, absolve e abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem | |
| recommenda ao santissimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, | |
| sejam satisfeitos, e que o que você amar na terra seja egualmente amado | |
| no ceu... | |
| Não digo mais, porque é preciso acabar o capitulo, e elle não acabou o | |
| discurso. Falou a todos os meus sentimentos de catholico e de namorado. | |
| Vi a alma alliviada de minha mãe, vi a alma feliz de Capitú, ambas em | |
| casa, e eu com ellas, e elle comnosco, tudo mediante uma pequena viagem | |
| a Roma, que eu só geographicamente sabia onde ficava; espiritualmente, | |
| tambem, mas a distancia que estaria da vontade de Capitú é que | |
| não. Eis o ponto essencial. Se Capitú achasse longe, não iria; mas | |
| era preciso ouvil-a, e assim tambem a Escobar, que me daria um bom | |
| conselho. | |
| XCVI | |
| Um substituto. | |
| Expuz a Capitú a ideia de José Dias. Ouviu-me attentamente, e acabou | |
| triste. | |
| --Você indo, disse ella, esquece-me inteiramente. | |
| --Nunca! | |
| --Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Italia principalmente. | |
| Não é de lá que vêm as cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não | |
| haverá outro meio? D. Gloria está morta para que você saia do seminario. | |
| --Sim, mas julga-se presa pela promessa. | |
| Capitú não achava outra ideia, nem acabava de adoptar esta. De caminho, | |
| pediu-me que, se acaso fosse a Roma, jurasse que no fim de seis mezes | |
| estaria de volta. | |
| --Juro. | |
| --Por Deus? | |
| --Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis mezes estarei de volta. | |
| --Mas se o papa não tiver ainda soltado a você? | |
| --Mando dizer isso mesmo. | |
| --E se você mentir? | |
| Esta palavra doeu-me muito, e não achei logo que lhe replicasse. | |
| Capitú metteu o negocio á bulha, rindo e chamando-me disfarçado. | |
| Depois, declarou crer que eu cumpriria o juramento, mas ainda assim | |
| não consentiu logo; ia ver se não haveria outra cousa, e eu que visse | |
| tambem por meu lado. | |
| Quando voltei ao seminario, contei tudo ao meu amigo Escobar, que | |
| me ouviu com egual attenção e acabou com a mesma tristeza da outra. | |
| Os olhos, de costume fugidios, quasi me comeram de contemplação. De | |
| repente, vi-lhe no rosto um clarão, um reflexo de ideia. E ouvi-lhe | |
| dizer com volubilidade: | |
| --Não, Bentinho, não é preciso isso. Ha melhor,--não digo melhor, | |
| porque o Santo Padre vale sempre mais que tudo,--mas ha cousa que | |
| produz o mesmo effeito. | |
| --Que é? | |
| --Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, | |
| dê-lhe um sacerdote, que não seja você. Ella póde muito bem tomar a si | |
| algum mocinho orphão, fazel-o ordenar á sua custa, está dado um padre | |
| ao altar, sem que você... | |
| --Entendo, entendo, é isso mesmo. | |
| --Não acha? continuou elle. Consulte sobre isto o protonotario; elle | |
| lhe dirá se não é a mesma cousa, ou eu mesmo consulto, se quer; e se | |
| elle hesitar, fala-se ao Sr. bispo. | |
| Eu, reflectindo: | |
| --Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se | |
| perdendo o padre. | |
| Escobar observou que, pelo lado economico, a questão era facil; minha | |
| mãe gastaria o mesmo que commigo, e um orphão não precisaria grandes | |
| commodidades. Citou a somma dos alugueis das casas, 1:070$000, além dos | |
| escravos... | |
| --Não ha outra cousa, disse eu. | |
| --E saimos juntos. | |
| --Você tambem? | |
| --Tambem eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou theologia. O | |
| proprio latim não é preciso; para quê no commercio? | |
| --_In hoc signo vinces_, disse eu rindo. | |
| Sentia-me pilherico. Oh! como a esperança alegra tudo. Escobar sorriu, | |
| parecendo gostar da resposta. Depois ficámos a cuidar de nós mesmos, | |
| cada um com os seus olhos perdidos, provavelmente. Os delle estavam | |
| assim, quando tornei de longe, e agradeci de novo o plano lembrado; não | |
| podia havel-o melhor. Escobar ouviu-me contentissimo. | |
| --Ainda uma vez, disse elle gravemente, a religião e a liberdade fazem | |
| boa companhia. | |
| XCVII | |
| A saida. | |
| Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou | |
| cedendo, depois que o padre Cabral, tendo consultado o bispo, voltou a | |
| dizer-lhe que sim, que podia ser. Saí do seminario no fim do anno. | |
| Tinha então pouco mais de dezesete... Aqui devia ser o meio do livro, | |
| mas a inexperiencia fez-me ir atraz da penna, e chego quasi ao fim | |
| do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não ha mais que | |
| leval-a a grandes pernadas, capitulo sobre capitulo, pouca emenda, | |
| pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta pagina vale por mezes, outras | |
| valerão por annos, e assim chegaremos ao fim. Um dos sacrificios | |
| que faço a esta dura necessidade é a analyse das minhas emoções dos | |
| dezesete annos. Não sei se alguma vez tiveste dezesete annos. Se | |
| sim, deves saber que é a edade em que a metade do homem e a metade | |
| do menino formam um só curioso. Eu era um curiosissimo, diria o meu | |
| aggregado José Dias, e não diria mal. O que essa qualidade superlativa | |
| me rendeu não poderia nunca dizel-o aqui, sem cair no erro que acabo de | |
| condemnar; a analyse das minhas emoções daquelle tempo é que entrava | |
| no meu plano. Posto que filho do seminario e de minha mãe, sentia | |
| já, debaixo do recolhimento casto, uns assomos de petulancia e de | |
| atrevimento; eram do sangue, mas eram tambem das moças que na rua ou da | |
| janella não me deixavam viver socegado. Achavam-me lindo, e diziam-m'o; | |
| algumas queriam mirar de mais perto a minha belleza, e a vaidade é um | |
| principio de corrupção. | |
| XCVIII | |
| Cinco annos. | |
| Venceu a razão; fui-me aos estudos. Passei os dezoito annos, os | |
| dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dous era bacharel em | |
| direito. | |
| Tudo mudára em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a envelhecer; | |
| ainda assim os cabellos brancos vinham de má vontade, aos poucos e | |
| espalhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram | |
| os mesmos de outr'ora. Já não andaria tanto de um lado para outro. Tio | |
| Cosme padecia do coração e ia descançar. A prima Justina apenas estava | |
| mais edosa. José Dias tambem, não tanto que me não fizesse a fineza | |
| de ir assistir á minha graduação, e descer commigo a serra, lepido e | |
| viçoso, como se o bacharel fosse elle. A mãe de Capitú fallecera, o pae | |
| aposentára-se no mesmo cargo em que quiz dar demissão da vida. | |
| Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro | |
| annos em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de | |
| prima Justina que elle affagára a ideia de convidar minha mãe a | |
| segundas nupcias; mas, se tal ideia houve, cumpre não esquecer a grande | |
| differença de edade. Talvez elle não pensasse em mais que associal-a | |
| aos seus primeiros tentamens commerciaes, e de facto, a pedido meu, | |
| minha mãe adeantou-lhe alguns dinheiros, que elle lhe restituiu, | |
| logo que poude, não sem este remoque: «D. Gloria é medrosa e não tem | |
| ambição.» | |
| A separação não nos esfriou. Elle foi o terceiro na troca das cartas | |
| entre mim e Capitú. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As | |
| relações que travou com o pae de Sancha estreitaram as que já trazia | |
| com Capitú, e fel-o servir a ambos nós, como amigo. A principio, | |
| custou-lhe a ella acceital-o, preferia José Dias, mas José Dias | |
| repugnava-me por um resto de respeito de creança. Venceu Escobar; posto | |
| que vexada, Capitú entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó | |
| das outras. Nem depois de casado suspendeu elle o obsequio... Que elle | |
| casou,--adivinha com quem,--casou com a boa Sancha, a amiga de Capitú, | |
| quasi irmã della, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta | |
| a «sua cunhadinha.» Assim se formam as affeições e os parentescos, as | |
| aventuras e os livros. | |
| XCIX | |
| O filho é a cara do pae. | |
| Minha mãe, quando eu regressei bacharel quasi estalou de felicidade. | |
| Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o evangelho de S. João, e | |
| dizendo ao ver-nos abraçados. | |
| --Mulher, eis ahi o teu filho! Filho, eis ahi a tua mãe! | |
| Minha mãe, entre lagrimas: | |
| --Mano Cosme, é a cara do pae, não é? | |
| --Sim, tem alguma cousa, os olhos, a disposição do rosto. É o pae, um | |
| pouco mais moderno, concluiu por chalaça. E diga-me agora, mana Gloria, | |
| não foi melhor que elle não teimasse em ser padre? Veja se este peralta | |
| daria um padre capaz. | |
| --Como vae o meu substituto? | |
| --Vae indo, ordena-se para o anno, respondeu tio Cosme. Has de ir ver a | |
| ordenação; eu tambem, se o meu senhor coração consentir. É bom que te | |
| sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração. | |
| --Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme, veja se não | |
| é a figura do meu defuncto. Olha, Bentinho, olha bem para mim. Sempre | |
| achei que te parecias com elle, agora é muito mais. O bigode é que | |
| desfaz um pouco... | |
| --Sim, mana Gloria, o bigode realmente... mas é muito parecido. | |
| E minha mãe beijava-me com uma ternura que não sei escrever. Tio | |
| Cosme, para alegral-a, chamava-me doutor, José Dias tambem, e todos em | |
| casa, a prima, os escravos, as visitas, Padua, a filha, e ella mesma | |
| repetiam-me o titulo. | |
| C | |
| «Tu serás feliz, Bentinho!» | |
| No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro | |
| da lata, ia pensando na felicidade e na gloria. Via o casamento e a | |
| carreira illustre, emquanto José Dias me ajudava calado e zeloso. | |
| Uma fada invisivel desceu alli, e me disse em voz egualmente macia e | |
| callida: «Tu serás feliz, Bentinho; tu vaes ser feliz.» | |
| --E porque não seria feliz? perguntou José Dias endireitando o tronco e | |
| fitando-me. | |
| --Você ouviu? perguntei eu erguendo-me tambem, espantado. | |
| --Ouvi o que? | |
| --Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz? | |
| --É boa! Você mesmo é que está dizendo... | |
| Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as | |
| fadas, expulsas dos contos e dos versos, metteram-se no coração da | |
| gente e falam de dentro para fóra. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi | |
| clara e distincta. Ha de ser prima das feiticeiras da Escocia: «Tu | |
| serás rei, Macbeth!»--«Tu serás feliz, Bentinho!» Ao cabo, é a mesma | |
| predicção, pela mesma toada universal e eterna. Quando voltei do meu | |
| espanto, ouvi o resto do discurso de José Dias: | |
| --... Ha de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma | |
| que alli está, que não é favor de ninguem. A distincção que tirou em | |
| todas as materias é prova disso; já lhe contei que ouvi da bocca dos | |
| lentes, em particular, os maiores elogios. Demais, a felicidade não é | |
| só a gloria, é tambem outra cousa... Ah! você não confiou tudo ao velho | |
| José Dias! O pobre José Dias está ahi para um canto, é cajú chupado, | |
| não vale nada; agora são os novos, os Escobares... Não lhe nego que é | |
| moço muito distincto, e trabalhador, e marido de truz; mas, **enfim, velho | |
| tambem sabe amar... | |
| --Mas que é? | |
| --Que ha de ser? Quem é que não sabe tudo?... Aquella intimidade de | |
| visinhos tinha de acabar nisto, que é verdadeiramente uma benção do | |
| ceu, porque ella é um anjo, é um _anjissimo_... Perdoe a cincada, | |
| Bentinho, foi um modo de accentuar a perfeição daquella moça. Cuidei | |
| o contrario, outr'ora; confundi os modos de creança com expressões de | |
| caracter, e não vi que essa menina travêssa e já de olhos pensativos | |
| era a flòr caprichosa de um fructo sadio e doce... Porque é que não | |
| me contou tambem o que outros sabem, e cá em casa está mais que | |
| adivinhado e approvado? | |
| --Mamãe approva devéras? | |
| --Pois então? Temos falado sobre isso, e ella fez-me o favor de pedir a | |
| minha opinião. Pergunte-lhe o que é que eu lhe disse em termos claros | |
| e positivos; pergunte-lhe. Disse-lhe que não podia desejar melhor nora | |
| para si, boa, discreta, prendada, amiga da gente... e uma dona de casa, | |
| que não lhe digo nada. Depois da morte da mãe, tomou conta de tudo. | |
| Padua, agora que se aposentou, não faz mais que receber o ordenado e | |
| entregal-o á filha. A filha é que distribue o dinheiro, paga as contas, | |
| faz o rol das despezas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você | |
| já a viu o anno passado. E quanto á formosura você sabe melhor que | |
| ninguem... | |
| --Mas, devéras, mamãe consultou o senhor sobre o nosso casamento? | |
| --Positivamente, não; fez-me o favor de perguntar se Capitú não daria | |
| uma boa esposa; eu é que, na resposta, falei em nora. D. Gloria não | |
| negou e até deu um ar de riso. | |
| --Mamãe sempre que me escrevia, falava de Capitú. | |
| --Você sabe que ellas se dão muito, e por isso é que sua prima anda | |
| cada vez mais amuada. Talvez agora case mais depressa. | |
| --Prima Justina? | |
| --Não sabe? São contos, naturalmente; mas emfim, o doutor João da Gosta | |
| enviuvou ha poucos mezes, e dizem (não sei, o protonotario é que me | |
| contou) dizem que os dous andam meio inclinados a acabar com a viuvez, | |
| entre si, casando-se. Ha de ver que não ha nada, mas não é fora de | |
| proposito, comquanto ella sempre achasse que o doutor era um feixe de | |
| ossos... Só se ella é um cemiterio, commentou rindo; e logo serio: Digo | |
| isto por gracejo... | |
| Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da minha fada interior, que me | |
| repetia, mas já então sem palavras: «Tu serás feliz, Bentinho » E a voz | |
| de Capitú me disse a mesma cousa, com termos diversos, e assim tambem | |
| a de Escobar, os quaes ambos me confirmaram a noticia de José Dias | |
| pela sua propria impressão. Emfim, minha mãe, algumas semanas depois, | |
| quando lhe fui pedir licença para casar, além do consentimento, deu-me | |
| egual prophecia, salva a redacção própria de mãe: «Tu serás feliz, meu | |
| filho!» | |
| CI | |
| No ceu. | |
| Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto | |
| de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, | |
| uma tarde do março, por signal que chovia. Quando chegámos ao alto da | |
| Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o ceu recolheu a chuva e | |
| accendeu as estrellas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só | |
| serão descobertas daqui a muitos seculos. Foi grande fineza e não foi | |
| unica. S. Pedro, que tem as chaves do ceu, abriu-nos as portas delle, | |
| fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o baculo, recitou alguns | |
| versiculos da sua primeira epistola: «As mulheres sejam sujeitas a seus | |
| maridos... Não seja o adorno dellas o enfeite dos cabellos riçados ou | |
| as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração.... Do | |
| mesmo modo, vós, maridos, co-habitai com ellas, tratando-as com honra, | |
| como a vasos mais fracos, e herdeiras comvosco da graça da vida....» | |
| Em seguida, fez signal aos anjos, e elles entoaram um trecho do | |
| _Cantico_, tão concertadamente, que desmentiriam a hypothese do tenor | |
| italiano, se a execução fosse na terra; mas era no ceu. A musica ia com | |
| o texto, como se houvessem nascido juntos, á maneira de uma opera de | |
| Wagner. Depois, visitámos uma parte daquelle logar infinito. Descança | |
| que não farei descripção alguma, nem a lingua humana possue fórmas | |
| idoneas para tanto. | |
| Ao cabo, póde ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um | |
| ex-seminarista que ouvir por toda a parte latim e Escriptura. É verdade | |
| que Capitú, que não sabia Escriptura nem latim, decorou algumas | |
| palavras, como estas, por exemplo: «Sentei-me á sombra daquelle que | |
| tanto havia desejado.» Quanto ás de S. Pedro, disse-me no dia seguinte | |
| que estava por tudo, que eu era a unica renda e o unico enfeite que | |
| jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre | |
| as mais finas rendas deste mundo. | |
| CII | |
| De casada. | |
| Imagina um relogio que só tivesse pendulo, sem mostrador, de maneira | |
| que não se vissem as horas escriptas. O pendulo iria de um lado para | |
| outro, mas nenhum signal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi | |
| aquella semana da Tijuca. | |
| De quando em quando, tornavamos ao passado e divertiamo-nos em | |
| relembrar as nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo | |
| de não sairmos de nós. Assim vivemos novamente a nossa longa espera de | |
| namorados, os annos da adolescencia, a denuncia que está nos primeiros | |
| capitulos, e riamos de José Dias, que conspirou a nossa desunião, e | |
| acabou festejando o nosso consorcio. Uma ou outra vez, falavamos em | |
| descer, mas as manhãs marcadas eram sempre de chuva ou de sol, e nós | |
| esperávamos um dia encoberto, que teimava em não vir. | |
| Não obstante, achei que Capitú estava um tanto impaciente por descer. | |
| Concordava em ficar, mas ia falando do pae e de minha mãe, da falta de | |
| noticias nossas, disto e daquillo, a ponto que nos arrufámos um pouco. | |
| Perguntei-lhe se já estava aborrecida de mim. | |
| --Eu? | |
| --Parece. | |
| --Você ha de ser sempre creança, disse ella fechando-me a cara entre | |
| as mãos e chegando muito os olhos aos meus. Então eu esperei tantos | |
| annos para aborrecer-me em sete dias? Não, Bentinho; digo isto porque | |
| é realmente assim, creio que elles pódem estar desejosos de ver-nos e | |
| imaginar alguma doença, e, confesso, pela minha parte, que queria ver | |
| papae. | |
| --Pois vamos amanhã. | |
| --Não; ha de ser com tempo encoberto, redarguiu rindo. | |
| Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciencia continuou, e | |
| descemos com sol. | |
| A alegria com que poz o seu chapéo de casada, e o ar de casada com | |
| que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar | |
| na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciencia de Capitú eram os | |
| signaes exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre | |
| quatro paredes e algumas arvores; precisava do resto do mundo tambem. | |
| E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ella, parando, olhando, | |
| falando, senti a mesma cousa. Inventava passeios para que me vissem, | |
| me confirmasses e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça | |
| curiosos, outros paravam, alguns perguntavam: «Quem são?» e um sabido | |
| explicava: «Este é o doutor Santiago, que casou ha dias com aquella | |
| moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de creanças; moram na | |
| Gloria, as familias residem em Matacavallos.» E ambos os dous: « É uma | |
| mocetona!» | |
| CIII | |
| A felicidade tem boa alma. | |
| Mocetona é vulgar; José Dias achou melhor. Foi a unica pessoa cá de | |
| baixo que nos visitou na Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras | |
| suas, mas palavras que eram musicas verdadeiras; não as ponho aqui para | |
| ir poupando papel, mas foram deliciosas. Um dia, comparou-nos a aves | |
| criadas em dous vãos de telhado contiguos. Imagina o resto, as aves | |
| emplumando as azas e surtindo ao ceu, e o ceu agora mais largo para | |
| poder contel-as tambem. Nenhum de nós riu; ambos escutavamos commovidos | |
| e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858.... A felicidade | |
| tem boa alma. | |
| CIV | |
| As pyramides. | |
| José Dias dividia-se agora entre mim e minha mãe, alternando os | |
| jantares da Gloria com os almoços de Matacavallos. Tudo corria bem. | |
| Ao fim de dous annos de casado, salvo o desgosto grande de não ter um | |
| filho, tudo corria bem. Perdera meu sogro, é verdade, e o tio Cosme | |
| estava por pouco, mas a saude de minha mãe era boa; a nossa excellente. | |
| Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando. | |
| Escobar contribuira muito para as minhas estréas no fòro. Interveiu com | |
| um advogado celebre para que me admitisse á sua banca, e arranjou-me | |
| algumas procurações, tudo espontaneamente. | |
| Demais, as nossas relações de familia estavam previamente feitas; | |
| Sancha e Capitú continuavam depois de casadas a amizade da escola, | |
| Escobar e eu a do seminario. Elles moravam em Andarahy, aonde queriam | |
| que fossemos muitas vezes, e, não podendo ser tantas como desejavamos, | |
| iamos lá jantar alguns domingos, ou elles vinham fazel-o comnosco. | |
| Jantar é pouco. Iamos sempre muito cedo, logo depois do almoço, para | |
| gozarmos o dia compridamente, e só nos separavamos ás nove, dez e onze | |
| horas, quando não podia ser mais. Agora que penso naquelles dias de | |
| Andarahy e da Gloria, sinto que a vida e o resto não sejam tão rijos | |
| como as Pyramides. | |
| Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi | |
| falar de uma aventura do marido, negocio de theatro, não sei que actriz | |
| ou bailarina, mas se foi certo, não deu escandalo. Sancha era modesta, | |
| o marido trabalhador. Como eu um dia dissesse a Escobar que lastimava | |
| não ter um filho, replicou-me: | |
| --Homem, deixa lá. Deus os dará quando quizer, e se não der nenhum é | |
| que os quer para si, e melhor será que fiquem no ceu. | |
| --Uma creanca, um filho é o complemento natural da vida. | |
| --Virá, so fòr necessário. | |
| Não vinha. Capitú pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava | |
| por mim a rezar e a pedil-o. Já não era como em creança; agora pagava | |
| antecipadamente, como os alugueis da casa. | |
| CV | |
| Os braços. | |
| No mais, tudo corria bem. Capitú gostava de rir e divertir-se, e, nos | |
| primeiros tempos, quando iamos a passeios ou espectaculos, era como | |
| um passaro que saisse da gaiola. Arranjava-se com graça e modestia. | |
| Embora gostasse de joias, como as outras moças, não queria que eu lhe | |
| comprasse muitas nem caras, e um dia affligiu-se tanto que prometti não | |
| comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo. | |
| A nossa vida era mais ou menos placida. Quando não estavamos com a | |
| familia ou com amigos, ou se não iamos a algum espectaculo ou serão | |
| particular (e estes eram raros) passavamos as noites á nossa janella | |
| da Gloria, mirando o mar e o ceu, a sombra das montanhas e dos navios, | |
| ou a gente que passava na praia. Ás vezes, eu contava a Capitú a | |
| historia da cidade, outras dava-lhe noticias de astronomia; noticias | |
| de amador que ella escutava attenta e curiosa, nem sempre tanto que não | |
| cochillasse um pouco. Não sabendo piano, apprendeu depois de casada, e | |
| depressa, e dahi a pouco tocava nas casas de amizade. Na Gloria era uma | |
| das nossas recreações; tambem cantava, mas pouco e raro, por não ter | |
| voz; um dia chegou a entender que era melhor não cantar nada e cumpriu | |
| o alvitre. De dansar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um | |
| baile; os braços é que... Os braços merecem um periodo. | |
| Eram bellos, e na primeira noite que os levou nús a um baile, não creio | |
| que houvesse eguaes na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de | |
| menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no marmore, | |
| donde vieram, ou nas mãos do divino esculptor. Eram os mais bellos da | |
| noite, a ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com | |
| as outras pessoas, só para vel-os, por mais que elles se entrelaçassem | |
| aos das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, | |
| quando vi que os homens não se fartavam de olhar para elles, de os | |
| buscar, quasi de os pedir, e que roçavam por elles as mangas pretas, | |
| fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o apoio | |
| de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tedios; concordou logo | |
| commigo. | |
| --Sanchinha tambem não vae, ou irá de mangas compridas; o contrario | |
| parece-me indecente. | |
| --Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas. Capitú | |
| já me chamou assim. | |
| Nem por isso deixei de contar a Capitú a approvação de Escobar. Ella | |
| sorriu e respondeu que os braços de Sanchinha eram mal feitos, mas | |
| cedeu depressa, e não foi ao baile; a outros foi, mas levou-os meio | |
| vestidos de escomilha ou não sei quê, que nem cobria nem descobria | |
| inteiramente, como o sendal de Camões. | |
| CVI | |
| Dez libras esterlinas. | |
| Já disse que era poupada, ou fica dito agora, e não só de dinheiro | |
| mas tambem de cousas usadas, dessas que se guardam por tradição, por | |
| lembrança ou por saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos | |
| rasos de fitas pretas que se cruzavam no peito do pé e principio da | |
| perna, os ultimos que usou antes de calçar botinas, trouxe-os para | |
| casa, e tirava-os de longe em longe da gaveta da commoda, com outras | |
| velharias, dizendo-me que eram pedaços de creança. Minha mãe, que tinha | |
| o mesmo genio, gostava de ouvir falar e fazer assim. | |
| Quanto ás puras economias de dinheiro, direi um caso, e basta. Foi | |
| justamente por occasião de uma licção de astronomia, á praia da Gloria. | |
| Sabes que alguma vez a fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em | |
| fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciumes. | |
| --Você não me ouve, Capitú. | |
| --Eu? Ouço perfeitamente. | |
| --O que é que eu dizia? | |
| --Você... você falava de Sirius. | |
| --Qual, Sirius, Capitú. Ha vinte minutos que eu falei de Sirius. | |
| --Falava de... falava de Marte, emendou ella apressada. | |
| Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhára o som da palavra, | |
| não o sentido. Fiquei serio, e o impeto que me deu foi deixar a sala; | |
| Capitú, ao percebel-o, fez-se a mais mimosa das creaturas, pegou-me na | |
| mão, confessou-me que estivera contando, isto é, sommando uns dinheiros | |
| para descobrir certa parcella que não achava. Tratava-se de uma | |
| conversão de papel em ouro. A principio suppuz que era um recurso para | |
| desentadar-me, mas d'ahi a pouco estava eu mesmo calculando tambem, já | |
| então com papel e lapis, sobre o joelho, e dava a differença que ella | |
| buscam. | |
| --Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim. | |
| Capitú fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era | |
| minha. Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na | |
| mão; eram as sobras do dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as | |
| despezas. | |
| --Tudo isto? | |
| --Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher poude | |
| arranjar, em alguns mezes, concluiu fazendo tinir o ouro na mão. | |
| --Quem foi o corretor? | |
| --O seu amigo Escobar. | |
| --Como é que elle não me disse nada? | |
| --Foi hoje mesmo. | |
| --Elle esteve cá? | |
| --Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não | |
| desconfiasse. | |
| Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente commemorativo, | |
| mas Capitú deteve-me. Ao contrario, consultou-me sobre o que haviamos | |
| de fazer daquellas libras. | |
| --São suas, respondi. | |
| --São nossas, emendou. | |
| --Pois você guarde-as. | |
| No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazem, e ri-me do segredo de | |
| ambos. Escobar sorriu e disse-me que estava para ir ao meu escriptorio | |
| contar-me tudo. A cunhadinha (continuava a dar este nome a Capitú) | |
| tinha-lhe falado naquillo por occasião da nossa ultima visita a | |
| Andarahy, e disse-lhe a razão do segredo. | |
| --Quando contei isto a Sanchinha, concluiu elle, ficou espantada: «Como | |
| é que Capitú póde economisar, agora que tudo está tão caro?»--«Não sei, | |
| filha; sei que arranjou dez libras.» | |
| --Vê se ella apprende tambem. | |
| --Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas tambem não é poupada; o | |
| que lhe dou chega, mas só chega. | |
| Eu, depois de alguns instantes de reflexão: | |
| --Capitú é um anjo! | |
| Escobar concordou de cabeça, mas sem enthusiasmo, como quem sentia não | |
| poder dizer o mesmo da mulher. Assim pensarias tu tambem, tão certo | |
| é que as virtudes das pessoas proximas nos dão tal ou qual vaidade, | |
| orgulho ou consolação. | |
| CVII | |
| Ciumes do mar. | |
| Se não fosse a astronomia, não descobriria eu tão cedo as dez libras | |
| de Capitú; mas não é por isso que torno a ella, é para que não cuides | |
| que a vaidade de professor é que me fez padecer com a desattenção de | |
| Capitú e ter ciumes do mar. Não, meu amigo. Venho explicar-te que tive | |
| taes ciumes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fóra | |
| ou acima della. É sabido que as distracções de uma pessoa pódem ser | |
| culpadas, metade culpadas, um terço, um quinto, um decimo de culpadas, | |
| pois que em materia de culpa a graduação é infinita. A recordação | |
| de uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se | |
| deleitem com a imaginação delles. Não é mister peccado effectivo e | |
| mortal, nem papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou signal | |
| ainda mais miudo e leve. Um anonymo ou anonyma que passe na esquina da | |
| rua faz com que mettamos Sirius dentro do Marte, e tu sabes, leitor, | |
| a differença que ha de um a outro na distancia e no tamanho, mas a | |
| astronomia tem dessas confusões. Foi isto que mo fez empallidecer, | |
| calar e querer fugir da sala para voltar. Deus sabe quando; | |
| provavelmente, dez minutos depois. Dez minutos depois, estaria eu outra | |
| vez na sala, ao piano ou á janella, continuando a licção interrompida: | |
| --Marte está a distancia de... | |
| Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciumes eram | |
| intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco | |
| ou menos reconstruiria o ceu, a terra e as estrellas. | |
| A verdade é que fiquei mais amigo de Capitú, se era possivel, ella | |
| ainda mais meiga, o ar mais brando, as noites mais claras, e Deus mais | |
| Deus. E não foram propriamente as dez libras esterlinas que fizeram | |
| isto, nem o sentimento de economia que revelavam e que eu conhecia, | |
| mas as cautelas que Capitú empregou para o fim de descobrir-me um dia | |
| o cuidado de todos os dias. Escobar tambem se me fez mais pegado ao | |
| coração. As nossas visitas foram-se tornando mais proximas, e as nossas | |
| conversações mais intimas. | |
| CVIII | |
| Um filho. | |
| Pois nem todo isso me matava a sède de um filho, um triste menino | |
| que fosse, amarello e magro, mas um filho, um filho proprio da minha | |
| pessoa. Quando iamos a Andarahy e viamos a filha de Escobar e Sancha, | |
| familiarmente Capitúsinha, por differençal-a de minha mulher, visto | |
| que lhe deram o mesmo nome á pia, ficavamos cheios de invejas. A | |
| pequena era graciosa e gorducha, faladeira e curiosa. Os paes, como | |
| os outros paes, contavam as travessuras e agudezas da menina, e nós, | |
| quando voltavamos á noite para a Gloria, vinhamos suspirando as nossas | |
| invejas, e pedindo mentalmente ao ceu que nol-as matassem... | |
| ... As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que | |
| viesse ao mundo o fructo dellas. Não era escasso nem feio, como eu já | |
| pedia, mas um rapagão robusto e lindo. | |
| A minha alegria quando elle nasceu, não sei dizel-a; nunca a tive | |
| egual, nem creio que a possa haver identica, ou que de longe ou | |
| de perto se pareça com ella. Foi uma vertigem e uma loucura. Não | |
| cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para não affligir | |
| Capitú convalescente. Tambem não caía, porque ha um deus para os paes | |
| novos. Fóra, vivia com o espirito no menino; em casa, com os olhos, a | |
| observal-o, a miral-o, a perguntar-lhe donde vinha, e porque é que eu | |
| estava tão inteiramente nelle, e varias outras tolices sem palavras, | |
| mas pensadas ou deliradas a cada instante. Talvez perdi algumas causas | |
| no fòro por descuido. | |
| Capitú não era menos terna para elle e para mim. Davamos as mãos um | |
| ao outro, e, quando não olhavamos para o nosso filho, conversavamos | |
| de nós, do nosso passado e do nosso futuro. As horas de maior encanto | |
| e mysterio eram as de amamentação. Quando eu via o meu filho chupando | |
| o leite da mãe, e toda aquella união da natureza para a nutrição e | |
| vida de um ser que não fòra nada, mas que o nosso destino affirmou | |
| que seria, e a nossa constancia e o nosso amor fizeram que chegasse a | |
| ser, ficava que não sei dizer nem digo; positivamente não me lembra, e | |
| receio que o que dissesse me saisse escuro. | |
| Escusai minucias. Assim que, não é preciso contar a dedicação de minha | |
| mãe e de Sancha, que tambem foi passar com Capitú os primeiros dias e | |
| noites. Quiz rejeitar o obsequio de Sandia; respondeu-me que eu não | |
| tinha nada com isso; tambem Capitú, em solteira, fora tratal-a á rua | |
| dos Invalidos. | |
| --Não se lembra que o senhor foi lá vel-a? | |
| --Lembra-me; mas Escobar... | |
| --Eu virei jantar com vocês, e ás noites sigo para Andarahy; oito dias, | |
| e está tudo passado. Bem se vê que você é pae de primeira viagem. | |
| --Tambem você; onde está a segunda? | |
| Usavamos então estas graças em familia. Hoje, que me recolhi á minha | |
| casmurrice, não sei se ainda ha tal linguagem, mas deve haver. Escobar | |
| cumpriu o que disse; jantava comnosco, e ia-se á noite. Sobre tarde | |
| desciamos á praia ou iamos ao Passeio Publico, fazendo elle os seus | |
| calculos, eu os meus sonhos. Eu via o meu filho medico, advogado, | |
| negociante, metti-o em varias universidades e bancos, e até acceitei a | |
| hypothese de ser poeta. A possibilidade de politico foi consultada, e | |
| cri que me saisse orador, e grande orador. | |
| --Póde ser, redarguia Escobar; ninguem diria o que veiu a ser | |
| Desmosthenes. | |
| Escobar acompanhava muita vez as minhas creancices; tambem interrogava | |
| o futuro. Chegou a falar da hypothese de casar o pequeno com a filha. | |
| A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar, | |
| ao ouvir-lhe isto, e na total ausencia de palavras com que alli | |
| assignei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo | |
| coração, que batia com grande força. Acceitei a lembrança, e propuz | |
| que os encaminhassemos a este fim, pela educarão egual e commum, pela | |
| infancia unida e correcta. | |
| Era minha ideia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia | |
| ser e seria minha mãe. Mas a primeira parte se trocou por intervenção | |
| do tio Cosme, que, ao ver a creança, disse-lhe entre outros carinhos. | |
| --Anda, toma o benção a teu padrinho, velhaco. | |
| E, voltando-se para mim: | |
| --Não desisto do favor; e ha de ser depressa o baptisado, antes que a | |
| minha doença me leve de vez. | |
| Contei discretamente a anecdota a Escobar, para que elle me | |
| comprehendesse e desculpasse; riu-se e não se magoou. Fez mais, quiz | |
| que o almoço do baptisado fosse na chacara delle, e foi. Eu ainda | |
| tentei espaçar a cerimonia a ver se tio Cosme succumbia primeiro á | |
| doença, mas parece que esta era mais de aborrecer que de matar. Não | |
| houve remedio senão levar o menino á pia, onde se lhe deu o nome de | |
| Ezequiel; era o de Escobar, e eu quiz supprir deste modo a falta de | |
| compadrio. | |
| CIX | |
| Um filho unico. | |
| Ezequiel, quando começou o capitulo anterior, não era ainda gerado; | |
| quando acabou era christão e catholico. Este outro é destinado a fazer | |
| chegar o meu Ezequiel aos cinco annos, um rapagão bonito, com os seus | |
| olhos claros, já inquietos, como se quizessem namorar todas as moças da | |
| visinhança, ou quasi todas. | |
| Agora, se considerares que elle foi unico, que nenhum outro veiu, certo | |
| nem incerto, morto nem vivo, um só e unico, imaginarás os cuidados que | |
| nos deu, os somnos que nos tirou, e que sustos nos metteram as crises | |
| dos dentes e outras, a menor febricula, toda a existencia commum das | |
| creanças. A tudo acudiamos, segundo cumpria e urgia, cousa que não era | |
| necessario dizer, mas ha leitores tão obtusos, que nada entendem, se se | |
| lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto. | |
| CX | |
| Rasgos da infancia. | |
| O resto come-me ainda muitos capitulos; ha vidas que os tem menos, e | |
| fazem-se ainda assim completas e acabadas. | |
| Aos cinco e seis annos, Ezequiel não parecia desmentir os meus sonhos | |
| da praia da Gloria; ao contrario, adivinhavam-se nelle todos as | |
| vocações possiveis, desde vadio até apostolo. Vadio é aqui posto no | |
| bom sentido, no sentido de homem que pensa e cala; mettia-se ás vezes | |
| comsigo, e nisto fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim tambem, | |
| agitava-se todo e instava por ir persuadir ás visinhas que os doces que | |
| eu lhe trazia eram doces devéras; não o fazia antes de farto d'elles, | |
| mas tambem os apostolos não levam a boa doutrina senão depois de a | |
| terem toda no coração. Escobar, bom negociante, opinava que a causa | |
| principal desta outra inclinação, talvez fosse convidar implicitamente | |
| as visinhas a egual apostolado, quando os paes lhe trouxessem doces; e | |
| ria-se da propria graça, e annunciava-me que o faria seu socio. | |
| Gostava de musica, não menos que de doce, e eu disse a Capitú que lhe | |
| tirasse ao piano o prégão do preto das cocadas de Matacavallos... | |
| --Não me lembra. | |
| --Não diga isso; você não se lembra daquelle preto que vendia doce, ás | |
| tardes... | |
| --Lembro-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da toada. | |
| --Nem das palavras? | |
| --Nem das palavras. | |
| A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido | |
| com attenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que | |
| lhe lembrarão ainda as vozes da sua infancia e adolescencia; haverá | |
| olvidado algumas, mas nem tudo fica na cabeça. Assim me replicou | |
| Capitú, e não achei treplica. Fiz, porém, o que ella não esperava; | |
| corri aos meus papeis velhos. Em S. Paulo, quando estudante, pedi a | |
| um professor de musica que me transcrevesse a toada do prégão; elle | |
| o fez com prazer (bastou-me repetir-lh'o de memoria), e eu guardei o | |
| papelinho; fui procural-o. D'ahi a pouco interrompi um romance que ella | |
| tocava, com o pedacinho de papel na mão. Expliquei-lh'o; ella teclou as | |
| dezeseis notas. | |
| Capitú achou á toada um sabor particular, quasi delicioso; contou ao | |
| filho a historia do prégão, e assim o cantava e teclava. Ezequiel | |
| aproveitou a musica para pedir-me que desmentisse o texto dando-lhe | |
| algum dinheiro. | |
| Fazia de medico, de militar, de actor e bailarino. Nunca lhe dei | |
| oratorios; mas cavallos de pau e espada á cinta eram com elle. Já não | |
| falo dos batalhões que passavam na rua, e que elle corria a ver: todas | |
| as creancas o fazem. O que nem todas fazem é ter os olhos que esta | |
| tinha. Em nenhuma vi as ancias de gosto com que assistia á passagem da | |
| tropa e ouvia tocar a marcha dos tambores. | |
| --Olha, papae! olha! | |
| --Estou vendo, meu filho! | |
| --Olha o commandante! Olha o cavallo do commandante! Olha os soldados! | |
| Um dia amanheceu tocando corneta com a mão; dei-lhe uma cornetinha de | |
| metal. Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que | |
| elle mirava por muito tempo, querendo que lhe explicasse uma peça | |
| de artilharia, um soldado caído, outro de espada alçada, e todos os | |
| seus amores iam para o de espada alçada. Um dia (ingenua edade!) | |
| perguntou-me impaciente: | |
| --Mas, papae, porque é que elle não deixa cair a espada de uma vez? | |
| --Meu filho, é porque é pintado. | |
| --Mas então porque é que elle se pintou? | |
| Ri-me do engano e expliquei-lhe que não era o soldado que se tinha | |
| pintado no papel, mas o gravador, e tive de explicar tambem, o que era | |
| gravador e o que era gravura: as curiosidades de Capitú, em summa. | |
| Taes são os principaes rasgos da infancia: mais um e acabo o capitulo. | |
| Um dia, na chacara de Escobar, deu com um gato que tinha um rato | |
| atravessado na bocca. O gato nem deixava a presa, nem via por onde | |
| fugisse. Ezequiel não disse nada, deteve-se, acocorou-se, e ficou | |
| olhando. Ao vel-o assim attento, perguntámos-lhe de longe o que era; | |
| fez-nos signal que nos calassemos. Escobar concluiu: | |
| --Vão ver que é o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a | |
| infestar-me a casa, que é o diabo. Vamos ver. | |
| Capitú quiz tambem ver o filho; acompanhei-os. Effectivamente, era | |
| um gato e um rato, lance banal, sem interesse nem graça. A unica | |
| circumstancia particular era estar o rato vivo, esperneando, e o meu | |
| pequeno enlevado. De resto, o instante foi curto. O gato, logo que | |
| sentiu mais gente, dispoz-se a correr; o menino, sem tirar-lhe os olhos | |
| de cima, fez-nos outro signal de silencio; e o silencio não podia | |
| ser maior. Ia dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho | |
| outra vez, não só por significar a totalidade do silencio, mas tambem | |
| porque havia naquella acção do gato e do rato alguma cousa que prendia | |
| com ritual. O unico rumor eram os ultimos guinchos do rato, aliás | |
| frouxissimos; as pernas mal se lhe moviam e desordenadamente. Um tanto | |
| aborrecido, bati palmas para que o gato fugisse, e o gato fugiu. Os | |
| outros nem tiveram tempo de atalhar-me, Ezequiel ficou abatido. | |
| --Ora, papae! | |
| --Que foi? A esta hora o rato está comido. | |
| --Pois sim, mas eu queria ver. | |
| Os dous riram-se; eu mesmo achei-lhe graça. | |
| CXI | |
| Contado depressa. | |
| Achei-lhe graça, e não lh'a nego ainda agora, apesar do tempo passado, | |
| dos successos occorridos, e da tal ou qual sympathia ao rato que acho | |
| em mim; teve graça. Não me pesa dizel-o; os que amam a natureza como | |
| ella quer ser amada, sem repudio parcial nem exclusões injustas, não | |
| acham nella nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato. Já pensei | |
| em os fazer viver juntos, mas vi que são incompativeis. Em verdade, | |
| um roe-me os livros, outro o queijo; mas não é muito que eu lhes | |
| perdoe, se já perdoei a um cachorro que me levou o descanço em peores | |
| circumstancias. Contarei o caso depressa. | |
| Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre, Sancha vivia ao pé | |
| della, e tres cães na rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi | |
| como se procurasse o leitor, que só agora sabe disto. Então resolvi | |
| matal-os; comprei veneno, mandei fazer tres bolas de carne, e eu mesmo | |
| inseri nellas a droga. De noite, saí; era uma hora; nem a doente, nem | |
| a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando elles me | |
| viram, afastaram-se, dous desceram para o lado da praia do Flamengo, um | |
| ficou a curta distancia, como que esperando. Fui-me a elle, assobiando | |
| e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos | |
| signaes de amizade, foi-se calando, até que se calou de todo. Como | |
| eu continuasse, elle veiu a mim, devagar, mexendo a cauda, que é o | |
| seu modo de rir delles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas, e ia | |
| deitar-lhe uma dellas, quando aquelle riso especial, carinho, confiança | |
| ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei assim não sei como, | |
| tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor póde parecer | |
| que foi o cheiro da carne que remetteu o cão ao silencio. Não digo | |
| que não; eu cuido que elle não me quiz attribuir perfidia ao gesto, e | |
| entregou-se-me. A conclusão é que se livrou. | |
| CXII | |
| As imitações de Ezequiel. | |
| Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, supponho, mas | |
| não as recusaria tambem. O que faria com certeza era ir atraz dos cães, | |
| a pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se tivesse um pau, iria a | |
| pau. Capitú morria por aquelle batalhador futuro. | |
| --Não sae a nós, que gostamos da paz, disse-me ella um dia, mas papae | |
| em moço era assim tambem; mamãe é que contava. | |
| --Sim, não sairá maricas, repliquei; eu só lhe descubro um | |
| defeitosinho, gosta de imitar os outros. | |
| --Imitar como? | |
| --Imitar os gestos, as modos, os altitudes; imita prima Justina, imita | |
| José Dias; já lhe achei até um geito dos pés de Escobar e dos olhos... | |
| Capitú deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que | |
| era preciso emendal-o. Agora reparava que realmente era vezo do filho, | |
| mas parecia-lhe que era só imitar por imitar, como succede a muitas | |
| pessoas grandes, que tomam as maneiras dos outros; e para que não fosse | |
| mais longe... | |
| --Tambem não vamos mortifical-o. Sempre ha tempo de corrigil-o. | |
| --Ha, vou ver. Você tambem não era assim, quando se zangava com | |
| alguem... | |
| --Quando me zangava, concordo; vingança de menino. | |
| --Sim, mas eu não gosto de imitações em casa. | |
| --E naquelle tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face. | |
| A resposta do Capitú foi um riso doce de escarneo, um desses risos que | |
| não se descrevem, e apenas se pintarão; depois estirou os braços e | |
| atirou-m'os sobre os hombros, tão cheios de graça que pareciam (velha | |
| imagem!) um collar de flores. Eu fiz o mesmo aos meus, e senti não | |
| haver alli um esculptor que nos transferisse a altitude a um pedaço de | |
| marmore. Só brilharia o artista, é certo. Quando uma pessoa ou um grupo | |
| saem bem, ninguem quer saber de modelo, mas da obra, e a obra é que | |
| fica. Não importa; nós saberiamos que eramos nós. | |
| CXIII | |
| Embargos de terceiro. | |
| Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso | |
| della, não continuei a sel-o apesar do filho e dos annos. Sim, senhor, | |
| continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me affligia, a mais | |
| intima palavra, uma insistencia qualquer: muita vez só a indifferença | |
| bastava. Cheguei a ter ciumes de tudo e de todos. Um visinho, um par | |
| de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou | |
| desconfiança. E certo que Capitú gostava de ser vista, e o meio mais | |
| proprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver tambem, e não ha | |
| ver sem mostrar que se vê. | |
| A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente | |
| por não achar da minha parte correspondencia aos seus affectos que | |
| me explicou daquella maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos | |
| me procuravam tambem, não muitos, e não digo nada sobre elles, tendo | |
| aliás confessado a principio as minhas aventuras vindouras, mas eram | |
| ainda vindouras. Naquelle tempo, por mais mulheres bonitas que achasse, | |
| nenhuma receberia a minima parte do amor que tinha a Capitú. A minha | |
| propria mãe não queria mais que metade. Capitú era tudo e mais que | |
| tudo; não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nella. Ao theatro | |
| iamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ella, um beneficio | |
| de actor, e uma estréa de opera, a que ella não foi por ter adoecido, | |
| mas quiz por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a | |
| Escobar; saí, mas voltei no fim do primeiro acto. Encontrei Escobar á | |
| porta do corredor. | |
| --Vinha falar-te, disse-me elle. | |
| Expliquei-lhe que tenha saido para o theatro, donde voltára receioso de | |
| Capitú, que ficára doente. | |
| --Doente de que? perguntou Escobar. | |
| --Queixava-se da cabeça e do estomago. | |
| --Então, vou-me embora. Vinha para aquelle negocio dos embargos... | |
| Eram uns embargos de terceiro; occorrera um incidente importante, e, | |
| tendo elle jantado na cidade, não quiz ir para casa sem dizer-me o que | |
| era, mas já agora falaria depois... | |
| --Não, falemos já, sóbe; ella póde estar melhor. Se estiver peor, | |
| desces. | |
| Capitú estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma | |
| dor de cabeça de nada, mas aggravára o padecimento para que eu fosse | |
| divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar quo mentia, | |
| para me não metter medo, mas jurou que era a verdade pura. Escobar | |
| sorriu e disse: | |
| --A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos. | |
| CXIV | |
| Em que se explica o explicado. | |
| Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que já ficou | |
| explicado, mas não bem explicado. Viste que eu pedi (cap. CX) a um | |
| professor de musica de S. Paulo que me escrevesse a toada daquelle | |
| prégão de doces de Matacavallos. Em si, a materia é chocha, e não vale | |
| a pena de um capitulo, quanto mais dous; mas ha materias taes que | |
| trazem ensinamentos interessantes, senão agradaveis. Expliquemos o | |
| explicado. | |
| Capitú e eu tinhamos jurado não esquecer mais aquelle prégão; foi em | |
| momento de grande ternura, e o tabellião divino sabe as cousas que se | |
| juram em taes momentos, elle que as registra nos livros eternos. | |
| --Você jura? | |
| --Juro, disse ella estendendo tragicamente o braço. | |
| Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mão; estava ainda no seminario. | |
| Quando fui para S. Paulo, querendo um dia relembrar a toada, vi que a | |
| ia perdendo inteiramente; consegui recordal-a e corri ao professor, que | |
| me fez o obsequio de a escrever no pedacinho de papel. Foi para não | |
| faltar ao juramento que fiz isto. Mas has de crer que, quando corri aos | |
| papeis velhos, naquelle noite da Gloria, tambem me não lembrava já da | |
| toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o | |
| meu peccado; esquecer, qualquer esquece. | |
| Ao certo, ninguem sabe se ha de manter ou não um juramento. Cousas | |
| futuras! Portanto, a nossa constituição politica, transferindo o | |
| juramento á affirmação simples, é profundamente moral. Acabou com um | |
| peccado terrivel. Faltar ao compromisso é sempre infidelidade, mas a | |
| alguem que tenha mais temor a Deus que aos homens não lhe importara | |
| mentir, uma vez ou outra, desde que não mette a alma no purgatorio. Não | |
| confundam purgatorio com inferno, que é o eterno naufragio. Purgatorio | |
| é uma casa de penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro | |
| alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, até que um dia uma ou | |
| duas virtudes medianas pagam todos os peccados grandes e pequenos. | |
| CXV | |
| Duvidas sobre duvidas. | |
| Vamos agora aos embargos... E porque iremos aos embargos? Deus sabe o | |
| que custa escrevel-os, quanto mais contal-os. Da circumstancia nova que | |
| Escobar me trazia apenas digo o que lhe disse então, isto é, que não | |
| valia nada. | |
| --Nada? | |
| --Quasi nada. | |
| --Então vale alguma cousa. | |
| --Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que você | |
| vae tomar commigo. | |
| --É tarde para tomar chá. | |
| --Tomaremos depressa. | |
| Tomámos depressa. Durante elle, Escobar olhava para mim desconfiado, | |
| como se cuidasse que eu recusava a circumstancia nova por forrar-me a | |
| escrevel-a; mas tal suspeita não ia com a nossa amizade. | |
| Quando elle saiu, referi as minhas duvidas a Capitú; ella as desfez | |
| com a arte fina que possuia, um geito, uma graça toda sua, capaz de | |
| dissipar as mesmas tristezas de Olympio. | |
| --Seria o negocio dos embargos, concluiu; e elle que veiu até aqui, a | |
| esta hora, é que está impressionado com a demanda. | |
| --Tens razão. | |
| Palavra puxa palavra, falei de outras duvidas. Eu era então um poço | |
| dellas; coaxavam dentro do mim, como verdadeiras rans, a ponto de me | |
| tirarem o somno algumas vezes. Disse-lhe que começava a achar minha mãe | |
| um tanto fria e arredia com ella. Pois aqui mesmo valeu a arte fina de | |
| Capitú! | |
| --Ja disse a você o que é; cousas de sogra. Mamãesinha tem ciumes de | |
| você; logo que elles passem e as saudades augmentem, ella torna a ser o | |
| que era. Em lhe faltando o neto... | |
| --Mas eu tenho notado que já é fria tambem com Ezequiel. Quando elle | |
| vae commigo, mamãe não lhe faz as mesmas graças. | |
| --Quem sabe se não anda doente? | |
| --Vamos nós jantar com ella amanhã? | |
| --Vamos... Não... Pois vamos. | |
| Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto | |
| que os seus cabellos brancos não o fossem todos nem totalmente, e o | |
| rosto estivesse comparativamente fresco; era uma especie de mocidade | |
| quinquagenaria ou do ancianidade viçosa, á escolha... Mas nada de | |
| melancolias; não quer falar dos olhos molhados, á entrada e á saida. | |
| Pouco entrou na conversação. Tambem não era differente da costumada. | |
| José Dias falou do casamento e suas bellezas, da politica, da Europa | |
| e da homeopathia, tio Cosme das suas molestias, prima Justina da | |
| visinhança, ou de José Dias, quando este saía da sala. | |
| Quando voltámos, á noite, viemos por alli a pé, falando das minhas | |
| duvidas. Capitú novamente me aconselhou que esperassemos. Sogras | |
| eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que me falava, | |
| recrudescia de ternura. Dalli em deante foi cada vez mais doce commigo; | |
| não me ia esperar á janella, para não espertar-me os ciumes, mas quando | |
| eu subia, via no alto da escada, entre as grades da cancella, a cara | |
| deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infancia. | |
| Ezequiel ás vezes estava com ella; nós o havíamos acostumado a ver o | |
| osculo da chegada e da saida, e elle enchia-me a cara de beijos. | |
| CXVI | |
| Filho do homem. | |
| Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou | |
| espantado. Não havia nada, nem podia haver cousa nenhuma, tantos eram | |
| os louvores incessantes que elle ouvia «á bella e virtuosa Capitú.» | |
| --Agora, quando os ouço, entro tambem no côro, mas a principio ficava | |
| envergonhadissimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste | |
| casamento, era duro confessar que elle foi uma verdadeira benção do | |
| ceu. Que digna senhora nos saiu a creança travessa de Matacavallos! O | |
| pae é que nos separou um pouco, em quanto não nos conheciamos, mas tudo | |
| acabou em bem. Pois, sim, senhor, quando D. Gloria elogia a sua nora e | |
| comadre... | |
| --Então mamãe?... | |
| --Perfeitamente! | |
| --Mas, porque e não nos visita ha tanto tempo? | |
| --Creio que tem andando mais achacada dos seus rheumatismos. Este anno | |
| tem feito muito frio... Imagine a afflicção della, que andava o dia | |
| inteiro; agora é obrigada a estar quieta, ao pé do irmão, que lá tem o | |
| seu mal... | |
| Quiz observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, | |
| e não a frieza quando iamos nós a Matacavallos; mas não estendi tão | |
| longe a intimidade do aggregado. José Dias pediu para ver o nosso | |
| «prophetasinho» (assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas do | |
| costume. Desta vez falou ao modo biblico (estivera na vespera a folhear | |
| o livro de Ezequiel, como soube depois), e perguntava-lhe: «Como vae | |
| isso, filho do homem?» «Dize-me, filho do homem, onde estão os teus | |
| brinquedos?» «Queres comer doce, filho do homem?» | |
| --Que filho do homem é esse, perguntou-lhe Capitú agastada. | |
| --São os modos de dizer da Biblia. | |
| --Pois eu não gosto delles, replicou ella com aspereza. | |
| --Tem razão, Capitú, concordou o aggregado. Voce não imagina como a | |
| Biblia é cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para | |
| variar... Tu como vaes, meu anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua? | |
| --Não, atalhou Capitú; já lhe vou tirando esse costume do imitar os | |
| outros. | |
| **--Mas tem muita graça; a mim, quando elle copia os meus gestos, | |
| parece-me que sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um | |
| gesto de D. Gloria, tão bom que ella lhe deu um beijo em paga. Vamos, | |
| como é que eu ando? | |
| --Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer. | |
| Eu mesmo achava feio tal séstro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando | |
| mais repetidos, como o das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até | |
| apanhara o modo de voltar da cabeça deste, quando falava, e o de | |
| deixal-a cair, quando ria. Capitú ralhava. Mas o menino era travesso, | |
| como o diabo; apenas começámos a falar de outra cousa, saltou ao meio | |
| da sala, dizendo a José Dias: | |
| --O senhor anda assim. | |
| Não podemos deixar de rir, eu mais que ninguem. A primeira pessoa que | |
| fechou a cara, que o reprehendeu e chamou a si foi Capitú. | |
| --Não quero isso, ouviu? | |
| CXVII | |
| Amigos proximos. | |
| Já então Escobar deixára Andarahy e comprára uma casa no Flamengo, casa | |
| que ainda alli vi, ha dias, quando me deu na gana experimentar se as | |
| sensações antigas estavam mortas ou dormiam só; não posso dizel-o bem, | |
| porque os somnos, quando são pesados, confundem vivos e defunctos, a | |
| não ser a respiração. Eu respirava um pouco, mas póde ser que fosse do | |
| mar, meio agitado. Emfim, passei, accendi um charuto, e dei por mim no | |
| Cattete; tinha subido pela rua da Princeza, uma rua antiga... Ó ruas | |
| antigas! ó casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós éramos antigos, e | |
| não é preciso dizer que no máu sentido, no sentido de velho e acabado. | |
| Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem | |
| o mesmo numero. Não digo que numero é para não irem indagar e cavar | |
| a historia. Não é que Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu | |
| pouco depois, por um modo que hei de contar. Emquanto viveu, uma vez | |
| que estavamos tão proximos, tinhamos por assim dizer uma só casa, eu | |
| vivia na delle, elle na minha, e o pedaço de praia entre a Gloria e | |
| o Flamengo era como um caminho de uso proprio e particular. Fazia-me | |
| pensar nas duas casas de Matacavallos, com o seu muro de permeio. | |
| Um historiador da nossa lingua, creio que João de Barros, põe na boca | |
| de um rei barbaro algumas palavras mansas, quando os portuguezes lhe | |
| propunham estabelecer alli ao pé uma fortaleza; dizia o rei que os | |
| bons amigos deviam ficar longe uns dos outros, não perto, para se não | |
| zangarem como as aguas do mar que batiam furiosas no rochedo que elles | |
| viam dalli. Que a sombra do escriptor me perdoe, se eu duvido que o | |
| rei dissesse tal palavra nem que ella seja verdadeira. Provavelmente | |
| foi o mesmo escriptor que a inventou para adornar o texto, e não fez | |
| mal, porque é bonita; realmente, é bonita. Eu creio que o mar então | |
| batia na pedra, como é seu costume, desde Ullysses e antes. Agora | |
| que a comparação seja verdadeira é que não. Seguramente ha inimigos | |
| contiguos, mas tambem ha amigos do perto e do peito. E o escriptor | |
| esquecia (salvo se ainda não era do seu tempo) esquecia o adagio: | |
| longe dos olhos, longe do coração. Nós não podiamos ter os corações | |
| agora mais perto. As nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós | |
| passavamos as noites cá ou lá conversando, jogando ou mirando o mar. | |
| Os dous pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Gloria. | |
| Como eu observasse que podia acontecer com elles o que se dera entre | |
| mim e Capitú, acharam todos que sim, e Sancha accrescentou que até já | |
| se iam parecendo. Eu expliquei: | |
| --Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros. | |
| Escobar concordou commigo, e insinuou que alguma vez as creanças que | |
| se frequentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de | |
| cabeça, como me succedia nas materias que eu não sabia bem nem mal. | |
| Tudo podia ser. O certo é que elles se queriam muito, e podiam acabar | |
| casados, mas não acabaram casados. | |
| CXVIII | |
| A mão de Sancha. | |
| Tudo acaba, leitor; é um velho truismo, a que se póde accrescentar | |
| que nem tudo o que dura dura muito tempo. Esta segunda parte não acha | |
| crentes faceis; ao contrario, a ideia de que um castello de vento dura | |
| mais que o mesmo vento de que é feito, difficilmente se despegará | |
| da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o costume | |
| daquellas construcções quasi eternas. | |
| O nosso castello era solido, mas um domingo... Na vespera tinhamos | |
| passado a noite no Flamengo, não só os dous casaes inseparaveis, como | |
| ainda o aggregado e prima Justina. Foi então que Escobar, falando-me á | |
| janella, disse-me que fossemos lá jantar no dia seguinte; precisavamos | |
| falar de um projecto em familia, um projecto para os quatro. | |
| --Para os quatro? Uma contradança. | |
| --Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanhã. | |
| Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da | |
| janella. Quando o marido saiu, veiu ter commigo. Perguntou-me de que | |
| é que falaramos; disse-lhe que de um projecto que eu não sabia qual | |
| fosse; ella pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma viagem á | |
| Europa dalli a dous annos. Disse isto de costas para dentro, quasi | |
| suspirando. O mar batia com grande força na praia; havia ressaca. | |
| --Vamos todos? perguntei por fim. | |
| --Vamos. | |
| Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, | |
| graças ás relações della e Capitú, não se me daria beijal-a na testa. | |
| Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternaes, | |
| pareciam quentes e intimativos, diziam outra cousa, e não tardou que se | |
| afastassem da janella, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A | |
| noite era clara. | |
| Dalli mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os | |
| em caminho. Pararam os quatro e ficaram deante uns dos outros, uns | |
| esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá | |
| na rua entre dous teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a | |
| voltar-me para fóra. E assim posto entrei a cavar na memoria se a | |
| alguma vez olhára para ella com a mesma expressão, e fiquei incerto. | |
| Tive uma certeza só, é que um dia pensei nella, como se pensa na bella | |
| desconhecida que passa**; mas então dar-se-hia que ella adivinhando... | |
| Talvez o simples pensamento me transluzisse cá fóra, e ella me fugisse | |
| outr'ora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencivel... | |
| Invencivel; esta palavra foi como uma benção de padre á missa, que a | |
| gente recebe e repete em si mesma. | |
| --O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao | |
| pé de mim. | |
| --Você entra no mar amanhã? | |
| --Tenho entrado com mares maiores, muito maiores.--Você não imagina o | |
| que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter | |
| estes pulmões,--disse elle batendo no peito, e estes braços; apalpa. | |
| Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta | |
| confissão, mas não posso supprimil-a; era jarretar a verdade. Nem só | |
| os apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra cousa: achei-os mais | |
| grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; accresce que sabiam | |
| nadar. | |
| Quando saímos, tornei a falar com os olhos á dona da casa. A mão della | |
| apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume. | |
| A modestia pedia então, como agora, que eu visse naquelle gesto de | |
| Sancha uma sancção ao projecto do marido e um agradecimento. Assim | |
| devia ser, mas um fluido particular que me correu todo o corpo desviou | |
| de mim a conclusão que deixo escripta. Senti ainda os dedos de Sancha | |
| entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem | |
| e de peccado. Passou depressa no relogio do tempo; quando cheguei o | |
| relogio ao ouvido, trabalhavam só os minutos da virtude e da razão. | |
| **--...Uma senhora deliciosissima, concluiu José Dias um discurso que | |
| vinha fazendo. | |
| --Deliciosissima! repeti com algum ardor, que moderei logo, | |
| emendando-me: Realmente, uma bella noite! | |
| --Como devem ser todas as daquella casa, continuou o aggregado. Cá | |
| fóra, não; cá fóra o mar está zangado; escute. | |
| Ouvia-se o mar forte,--como já se ouvia de casa,--a ressaca era | |
| grande, e, a distancia, viam-se crescer as ondas. Capitú e prima | |
| Justina, que iam adeante, detiveram-se n'uma das voltas da praia, e | |
| fomos conversando os quatro; mas eu conversava mal. Não havia meio de | |
| esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocámos. Agora | |
| achava-lhes isto, agora aquillo. Os instantes do diabo intercalavam-se | |
| nos minutos de Deus, e o relogio foi assim marcando alternativamente | |
| a minha perdição e a minha salvação. José Dias despediu-se de nós | |
| á porta. Prima Justina dormiu em nossa casa; iria embora, no dia | |
| seguinte, depois do almoço e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, | |
| onde me demorei mais que de costume. | |
| O retrato de Escobar, que eu tinha alli, ao pé do de minha mãe, | |
| falou-me como se fosse a propria pessoa. Combati sinceramente os | |
| impulsos que trazia do Flamengo; rejeitei a figura da mulher do | |
| meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me affirmava que | |
| houvesse alguma intenção daquella especie no gesto da despedida e nos | |
| anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha | |
| e Capitú eram tão amigas que seria um prazer mais para ellas irem | |
| juntas. Quando houvesse alguma intenção sexual, quem me provaria que | |
| não era mais que uma sensação fulgurante, destinada a morrer com a | |
| noite e o somno? Ha remorsos que não nascem de outro peccado, nem tem | |
| maior duração. Agarrei-me a esta hypothese que se conciliava com a | |
| mão de Sancha, que eu sentia de memoria dentro da minha mão, quente e | |
| demorada, apertada e apertando... | |
| Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a attracção. A timidez | |
| póde ser que fosse outra causa daquella crise; não é só o ceu que dá as | |
| nossas virtudes, a timidez tambem, não contando o acaso, mas o acaso | |
| é um méro accidente; a melhor origem dellas é o ceu. Entretanto, como | |
| a timidez vem do ceu, que nos dá a compleição, a virtude, filha della | |
| é, genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim reflectiria, se | |
| pudesse; mas a principio vaguei á tôa. Paixão não era nem inclinação. | |
| Capricho seria ou quê? Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente | |
| nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a altitude franca e | |
| simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me. | |
| CXIX | |
| Não faça isso, querida. | |
| A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descançar | |
| da cavatina de hontem para a valsa de hoje, quer fechal-o ás pressas, | |
| ao ver que beiramos um abysmo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo. | |
| CXX | |
| Os autos. | |
| Na manhã seguinte accordei livre das abominações da vespera; | |
| chamei-lhes allucinações, tomei café, percorri os jornaes e fui | |
| estudar uns autos. Capitú e prima Justina sairam para a missa das | |
| nove, na Lapa. A figura de Sancha desappareceu inteiramente no meio | |
| das allegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, allegações | |
| falsas, inadmissiveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era | |
| facil ganhar a demanda; consultei Dalloz, Pereira e Souza... | |
| Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bella photographia | |
| tirada um anno antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão | |
| esquerda no dorso de uma cadeira, a direita mettida ao peito, o olhar | |
| ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. | |
| A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatoria, escripta | |
| embaixo, não nas costas do cartão: «Ao meu querido Bentinho o seu | |
| querido Escobar 20-4-70.» Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos | |
| daquella manhã, e espancaram de todo as recordações da vespera. | |
| Naquelle tempo a minha vista era boa; eu podia lel-as do logar em que | |
| estava. Tornei aos autos. | |
| CXXI | |
| A catastrophe. | |
| No melhor delles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, | |
| soaram palmas, golpes na cancella, vozes, acudiram todos, acudi eu | |
| mesmo. Era um escravo da casa de Sancha que me chamava: | |
| --Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo. | |
| Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei | |
| recado a Capitú e corri ao Flamengo. | |
| Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar metteu-se a nadar, como | |
| usava fazer, arriscou-se um pouco mais fóra que de costume, apesar do | |
| mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam | |
| trazer-lhe o cadaver. | |
| CXXII | |
| O enterro. | |
| A viuva... Poupo-vos as lagrimas da viuva, as minhas, as da outra | |
| gente. Sai de lá cerca de onze horas; Capitú e prima Justina | |
| esperavam-me, uma com o parecer abatido e estupido, outra enfastiada | |
| apenas. | |
| --Vão fazer companhia a pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro. | |
| Assim fizemos. Quiz que o enterro fosse pomposo, e a affluencia dos | |
| amigos foi numerosa. Praia, ruas, praça da Gloria, tudo eram carros, | |
| muitos delles particulares. A casa, não sendo grande, não podiam lá | |
| caber todos; muitos estavam na praia, falando do desastre, apontando | |
| o logar em que Escobar fallecèra, ouvindo referir a chegada do morto. | |
| José Dias ouviu tambem falar dos negocios do finado, divergindo alguns | |
| na avaliação dos bens, mas havendo accordo em que o passivo devia ser | |
| pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar. Um ou outro discutia | |
| o recente gabinete Rio Branco; estavamos em Março de 1871. Nunca me | |
| esqueceu o mez nem o anno. | |
| Como eu houvesse resolvido falar no cemiterio, escrevi algumas linhas e | |
| mostrei-as em casa a José Dias, que as achou realmente dignas do morto | |
| e de mim. Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando | |
| as palavras, e confirmou a primeira opinião; no Flamengo espalhou a | |
| noticia. Alguns conhecidos vieram interrogar-me: | |
| --Então, vamos ouvil-o? | |
| --Quatro palavras. | |
| Poucas mais seriam. Tinha-as escripto com receio de que a emoção me | |
| impedisse de improvisar. No tilbury em que andei uma ou duas horas, não | |
| fizera mais que recordar o tempo do seminario, as relações de Escobar, | |
| as nossas sympathias, a nossa amizade, começada, continuada e nunca | |
| interrompida, até que um lance da fortuna fez separar para sempre duas | |
| creaturas que promettiam ficar por muito tempo unidas. De quando em | |
| quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou duas ou tres perguntas | |
| sobre a minha situação moral; não me arrancando nada, continuou o seu | |
| officio. Chegando a casa, deitei aquellas emoções ao papel; tal seria o | |
| discurso. | |
| CXXIII | |
| Olhos de ressaca. | |
| Emfim, chegou a hora da encommendação e da partida. Sancha quiz | |
| despedir-se do marido, e o desespero daquelle lance consternou a todos. | |
| Muitos homem choravam tambem, as mulheres todas. Só Capitú, amparando | |
| a viuva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria | |
| arrancal-a dalli. A confusão era geral. No meio della, Capitú olhou | |
| alguns instantes para o cadaver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que | |
| não admira lhe saltassem algumas lagrimas poucas e caladas... | |
| As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as della; Capitú enxugou-as | |
| depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou | |
| de caricias para a amiga, e quiz leval-a; mas o cadaver parece que | |
| a retinha tambem. Momento houve em que os olhos de Capitú fitaram o | |
| defuncto, quaes os da viuva, sem o pranto nem palavras desta, mas | |
| grandes e abertos, como a vaga do mar lá fóra, como se quizesse tragar | |
| tambem o nadador da manhã. | |
| CXXIV | |
| O discurso. | |
| --Vamos, são horas... | |
| Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechámol-o, e eu | |
| peguei n'uma das argolas; rompeu o alarido final. Palavra que, quando | |
| cheguei á porta, vi o sol claro, tudo gente e carros, as cabeças | |
| descobertas, tive um daquelles meus impulsos que nunca chegavam á | |
| execução: foi atirar á rua caixao, defuncto e tudo. No carro disse a | |
| José Dias que se calasse. No cemiterio tive de repetir a cerimonia | |
| da casa, desatar as correias, e ajudar a levar o feretro á cova. O | |
| que isto me custou imagina. Descido o cadaver á cova, trouxeram a cal | |
| e a pá; sabes disto, terás ido a mais de um enterro, mas o que não | |
| sabes nem póde saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro | |
| extranho, é a crise que me tornou quando vi todos os olhos em mim, | |
| os pés quietos, as orelhas attentas, e, ao cabo de alguns instantes | |
| de total silencio, um sussurro vago, algumas vozes interrogativas, | |
| signaes, e alguem, José Dias, que me dizia ao ouvido: | |
| --Então, fale. | |
| Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso annunciado. | |
| Machinalmente, metti a mão no bolso, saquei o papel e li-o aos | |
| trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me entrar | |
| em vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção nova que me | |
| fazia assim, era o proprio texto, as memorias do amigo, as saudades | |
| confessadas, os louvores á pessoa e aos seus meritos; tudo isto que | |
| eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo, temendo que me | |
| adivinhassem a verdade, forcejava por escondel-a bem. Creio que poucos | |
| me ouviram, mas o gesto geral foi de comprehensão e de approvação. | |
| As mãos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam: | |
| «Muito bonito! muito bem! magnifico!» José Dias achou que a eloquencia | |
| estivera na altura da piedade. Um homem, que me pareceu jornalista, | |
| pediu-me licença para levar o manuscripto e imprimil-o. Só a minha | |
| grande turvação recusaria um obsequio tão simples. | |
| CXXV | |
| Uma comparação. | |
| Priamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquelle | |
| que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não | |
| obstante contal-o em verso, mas ha narrações exactas em verso, e até | |
| mau verso. Compara tu a situação de Priamo com a minha; eu acabava de | |
| louvar as virtudes do homem que recebera defuncto aquelles olhos... E | |
| impossivel que algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor | |
| effeito, ou quando menos, egual. Nem digas que nos faltam Homeros, | |
| pela causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é | |
| porque os Priamos procuram a sombra e o silencio. As lagrimas, se as | |
| tèm, são enxugadas atraz da porta, para que as caras appareçam limpas | |
| e serenas; os discursos são antes de alegria que do melancolia, e tudo | |
| passa como se Achilles não matasse Heitor. | |
| CXXVI | |
| Scismando. | |
| Pouco depois de sair do cemiterio, rasguei o discurso e deitei os | |
| pedaços pela portinhola fóra, sem embargo dos esforços de José Dias | |
| para impedil-o. | |
| --Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de | |
| dal-o a imprimir, fica já destruido de uma vez. Não presta, não vale | |
| nada. | |
| José Dias demonstrou longamente o contrario, depois elogiou o enterro, | |
| e por ultimo fez o panegyrico do morto, uma grande alma, espirito | |
| activo, coração recto, amigo, bom amigo, digno da esposa amantissima | |
| que Deus lhe dera... | |
| Neste ponto do discurso, deixei-o falar sósinho e peguei a scismar | |
| commigo. O que scismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar | |
| pé. No Cattete mandei parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar | |
| as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa; eu iria a pé. | |
| --Mas... | |
| --Vou fazer uma visita. | |
| A razão d'isto era acabar de scismar, e escolher uma resolução que | |
| fosse adequada ao momento. O carro andaria mais depressa que as | |
| pernas; estas iriam pausadas ou não, podiam afrouxar o passo, parar, | |
| arrepiar caminho, e deixar que a cabeça scismasse á vontade. Fui | |
| andando e scismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na vespera e | |
| o desespero daquelle dia; eram inconciliaveis. A viuva era realmente | |
| amantissima. Assim se desvaneceu de todo a illusão da minha vaidade. | |
| Não seria o mesmo caso de Capitú? Cuidei de recompôr-lhe os olhos, a | |
| posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia naturalmente | |
| impôr-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que aqui | |
| vae por ordem logica e deductiva, tinha sido antes uma barafunda de | |
| ideias e sensações, graças aos solavancos do carro e ás interrupções de | |
| José Dias. Agora, porém, raciocinava e evocava claro e bem. Conclui de | |
| mim para mim que era a antiga paixão que me offuscava ainda e me fazia | |
| desvairar como sempre. | |
| Quando cheguei a esta conclusão final, chegava tambem á porta de | |
| casa, mas voltei para traz, e subi outra vez a rua do Cattete. Eram | |
| as duvidas que me affligiam ou a necessidade de affligir Capitú com | |
| a minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo | |
| espaço, até que me senti socegar, e endireitei para casa. Batiam oito | |
| hora n'uma padaria. | |
| CXXVII | |
| O barbeiro. | |
| Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a | |
| rabeca e não tocava inteiramente mal. Na occasião em que ia passando, | |
| executava não sei que peça. Parei na calçada a ouvil-o (tudo são | |
| pretextos a um coração agoniado), elle viu-me, o continuou a tocar. Não | |
| attendeu a um freguez, e logo a outro, que alli foram, a despeito da | |
| hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras á navalha. Perdeu-os sem | |
| perder uma nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar | |
| francamente a porta da loja, voltado para elle. Ao fundo, levantando | |
| a cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma | |
| moça trigueira, vestido claro, flôr no cabello. Era a mulher delle; | |
| creio que me descobriu de dentro, e veiu agradecer-me com a presença o | |
| favor que eu fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizel-o com | |
| os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais calor; sem ver a | |
| mulher, sem ver freguezes, grudava a face ao instrumento, passava a | |
| alma ao arco, e tocava, tocava... | |
| Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e | |
| vim andando para casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem | |
| estrepito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar | |
| ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta maxima, que os | |
| compiladores, pódem tirar daqui e inserir nos compendios de escola. | |
| A maxima é que a gente esquece devagar as boas acções que pratica, | |
| e verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas | |
| barbas naquella noite, que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser | |
| ouvido de um transeunte. Suppõe agora que este, em vez de ir-se embora, | |
| como eu fui, ficava á porta a ouvil-o e a namorar-lhe a mulher; então | |
| é que elle, todo arco, todo rabeca, tocaria desesperadamente. Divina | |
| arte! | |
| CXXVIII | |
| Punhado de successos. | |
| Como ia dizendo, subi as escadas sem estrepito, empurrei a cancella, | |
| que estava apenas encostada, o dei com prima Justina e José Dias | |
| jogando cartas na saleta proxima. Capitú levantou-se do canapé e veiu | |
| a mim. O rosto della era agora sereno e puro. Os outros suspenderam | |
| o jogo, e todos falámos do desastre e da viuva. Capitú censurou a | |
| imprudencia de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a | |
| dor da amiga. Perguntei-lhe por que não ficára com Sancha aquella noite. | |
| --Tem lá muita gente; ainda assim offereci-me, mas não quiz. Tambem lhe | |
| disse que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias comnosco. | |
| --Tambem não quiz? | |
| --Tambem não. | |
| --Entretanto, a vista do mar ha de ser-lhe penosa, todas as manhãs, | |
| ponderou José Dias, e não sei como poderá... | |
| --Mas, passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina. | |
| E como em torno desta ideia, começassemos uma troca de palavras, | |
| Capitú saiu para ir ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, | |
| concertou os cabellos tão demoradamente que pareceria affectação, se | |
| não soubessemos que ella era muito amiga de si. Quando tornou trazia | |
| os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo pensára | |
| na filhinha de Sancha, e na afflicção da viuva. E, sem se lhe dar das | |
| visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, | |
| se quizesse pensar nella, era preciso pensar primeiro na minha vida. | |
| José Dias achou a phrase «lindissima», e perguntou a Capitú porque é | |
| que não fazia versos. Tentei metter o caso á bulha, e assim acabámos a | |
| noite. | |
| No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que | |
| quizesse dal-o a imprimir, mas era lembrança do finado. Pensei em | |
| recompôl-o, mas só achei phrases soltas, que uma vez juntas não tinham | |
| sentido. Tambem pensei em fazer outro, mas era já difficil, e podia ser | |
| apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemiterio. Quanto a | |
| recolher os pedacinhos de papel deitados á rua, era tarde; estariam já | |
| varridos. | |
| Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, | |
| uma bengala de marfim, um passaro, o album de Capitú, duas paizagens | |
| do Paraná e outras. Tambem elle as possuia de minha mão. Vivemos | |
| assim a trocar memorias e regalos, ora em dia de annos, ora sem razão | |
| particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornaes do | |
| dia: davam noticia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e | |
| os negocios deste, as qualidades pessoaes, a sympathia do commercio, | |
| e tambem falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Todo isso | |
| foi na segunda feira. Na terça-feira foi aberto o testamento, que me | |
| nomeava segundo testamenteiro; o primeiro logar cabia á mulher. Não | |
| me deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada | |
| eram sublimes de amizade e estima. Capitú desta vez chorou muito; mas | |
| compoz-se depressa. | |
| Testamento, inventario, tudo andou quasi tão depressa como aqui vae | |
| dito. Ao cabo de pouco tempo, Sancha retirou-se para a casa dos | |
| parentes no Paraná. | |
| CXXIX | |
| A D. Sancha. | |
| D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até | |
| aqui, abandone o resto. Basta fechal-o; melhor será queimal-o, para lhe | |
| não dar tentação e abril-o outra vez. Se, apesar do aviso, quizer ir | |
| até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber. O que já | |
| lhe tiver feito, contando os gestos daquelle sabbado, esse acabou, uma | |
| vez que os acontecimentos, e eu com elles, desmentimos a minha illusão; | |
| mas o que agora a alcançar, esse é indelevel. Não, amiga minha, não | |
| leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma | |
| cousa, e é ainda o melhor que se póde fazer depois da mocidade. Um dia, | |
| iremos daqui até a porta do ceu, onde nos encontraremos renovados, como | |
| as plantas novas, _come piante novelle_, | |
| Rinovalatte di novelle fronde. | |
| O resto em Dante. | |
| CXXX | |
| Um dia... | |
| Porquanto, um dia Capitú quiz saber o que é que me fazia andar calado | |
| e aborrecido. E propoz-me a Europa, Minas, Petropolis, uma serie de | |
| bailes, mil desses remedios aconselhados aos melancolicos. Eu não | |
| sabia que lhe respondesse; recusei as diversões. Como insistisse, | |
| repliquei-lhe que os meus negocios andavam mal. Capitú sorriu para | |
| animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até | |
| lá as joias, os objectos de algum valor seriam vendidos, e iriamos | |
| residir em algum becco. Viveriamos socegados e esquecidos; depois | |
| tornariamos á tona da agua. A ternura com que me disse isto era de | |
| commover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe seccamente que | |
| não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. | |
| Ella propoz-me jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a | |
| Matacavallos; e, como eu não acceitasse nada, foi para a sala, abriu o | |
| piano, e começou a tocar; eu aproveitei a ausencia, peguei do chapéo e | |
| saí. | |
| ... Perdão, mas este capitulo devia ser precedido de outro, em que | |
| contasse um incidente, occorrido poucas semanas antes, dous mezes | |
| depois da partida de Sancha. Vou escrevel-o; podia antepôl-o a este, | |
| antes de mandar o livro ao prélo, mas custa muito alterar o numero dos | |
| paginas; vae assim mesmo, depois a narração seguirá direita até o fim. | |
| Demais, é curto. | |
| CXXXI | |
| Anterior ao anterior. | |
| Foi o caso que a minha vida em outra vez doce e placida, a banca do | |
| advogado rendia-me bastante, Capitú estava mais bella, Ezequiel ia | |
| crescendo. Começava o anno de 1872. | |
| --Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma espressão exquisita? | |
| perguntou-me Capitú. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papae e o | |
| defuncto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado | |
| de papae, não precisa revirar os olhos, assim, assim... | |
| Era depois de jantar; estavamos ainda á mesa, Capitú brincava com | |
| o filho, ou elle com ella, ou um com outro, porque, em verdade, | |
| queriam-se muito, mas é tambem certo que elle me queria ainda mais a | |
| mim. Approximei-me de Ezequiel, achei que Capitú tinha razão; eram os | |
| olhos de Escobar, mas não me pareceram exquisitos por isso. Afinal | |
| não haveria mais que meia duzia de expressões no mundo, e muitas | |
| semelhanças se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou | |
| espantado para ella e para mim, e afinal saltou-me ao collo: | |
| --Vamos passear, papae? | |
| --Logo, meu filho. | |
| Capitú, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, | |
| dizendo-lhe eu que, na belleza, os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, | |
| Capitú sorriu abanando a cabeça com um ar que nunca achei em mulher | |
| alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas | |
| valem o que vale a affeição da gente, e é dahi que mestre Povo tirou | |
| aquelle adagio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitú tinha meia | |
| duzia de gestos unicos na terra. Aquelle entrou-me pela alma dentro. | |
| Assim fica explicado que eu corresse á minha esposa e amiga e lhe | |
| enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente não é radicalmente | |
| necessario á comprehensão do capitulo passado e dos futuros; fiquemos | |
| nos olhos de Ezequiel. | |
| CXXXII | |
| O debuxo e o colorido. | |
| Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa | |
| inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo | |
| que o artista vae enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a | |
| ver, sorrir, palpitar, falar quasi, até que a familia pendura o quadro | |
| na parede, em memoria do que foi e já não póde ser. Aqui podia ser e | |
| era. O costume valeu muito contra o effeito da mudança: mas a mudança | |
| fez-se, não á maneira de theatro, fez-se como a manhã que aponta | |
| vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois lê-se a carta na | |
| rua, em casa, no gabinete, sem abrir as janellas; a luz coada pelas | |
| persianas basta a distinguir as lettras. Li a carta, mal a principio e | |
| não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, mettia o papel | |
| no bolso, corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a | |
| fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e a carta, a lettra | |
| era clara e a noticia clarissima. | |
| Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminario e do Flamengo | |
| para se sentar commigo á mesa, receber-me na escada, beijar-me no | |
| gabinete de manhã, ou pedir-me á noite a benção do costume. Todas | |
| essas acções eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me | |
| não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular | |
| ao mundo, não podia fazel-o a mim, que vivia mais perto de mim que | |
| ninguem. Quando nem mãe nem filho estavam commigo o meu desespero | |
| era grande, e eu jurava matal-os a ambos, ora de golpe, ora devagar, | |
| para dividir pelo tempo da morte todas os minutos da vida embaçada | |
| e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a | |
| creaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e differia o | |
| castigo de um dia para outro. | |
| O que se passava entre mim e Capitú naquelles dias sombrios, não se | |
| notará aqui, por ser tão miudo e repetido, e já tão tarde que não | |
| se poderá dizel-o sem falha nem canceira. Mas o principal irá. E o | |
| principal é que os nossos temporaes eram agora continuos e terriveis. | |
| Antes de descoberta aquella má terra da verdade, tivemos outros de | |
| pouca dura; não tardava que o ceu se fizesse azul, o sol claro e o mar | |
| chão, por onde abríamos novamente as velas que nos levavam ás ilhas e | |
| costas mais bellas do universo, até que outro pé de vento desbaratava | |
| tudo, e nós, postos á capa, esperavamos outra bonança, que não era | |
| tardia nem dubia, antes total, proxima e firme. | |
| Releva-me estas metaphoras; cheiram ao mar e á maré que deram morte ao | |
| meu amigo e comborço Escobar. Cheiram tambem aos olhos de ressaca de | |
| Capitú. Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquella parte | |
| da minha vida, como um marujo contaria o seu naufragio. | |
| Já entre nós só faltava dizer a palavra ultima; nós a liamos, porém, | |
| nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha | |
| para nós não fazia mais que separar-nos. Capitú propoz mettel-o em um | |
| collegio, donde só viesse aos sabbados; custou muito ao menino acceitar | |
| esta situação. | |
| --Quero ir com papae! Papae ha de ir commigo! bradava elle. | |
| Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda feira. Era no | |
| antigo largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como | |
| levára o ataúde do outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a | |
| cada passo, se voltaria para casa, e quando, e se eu iria vel-o... | |
| --Vou. | |
| --Papae não vae! | |
| --Vou sim. | |
| --Jura, papae! | |
| --Pois sim. | |
| --Papae não diz que jura. | |
| --Pois juro. | |
| E lá o levei e deixei. A ausencia temporaria não atalhou o mal, e toda | |
| a arte fina de Capitú para fazel-o attenuar, ao menos, foi como se | |
| não fosse; eu sentia-me cada vez peor. A mesma situação nova aggravou | |
| a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fóra da minha vista; mas a | |
| volta delle, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, | |
| ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a | |
| volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz; dentro de pouco, já | |
| me parecia a mesma. Aos sabbados, buscava não jantar em casa e só | |
| entrar quando elle estivesse dormindo; mas não escapava ao domingo, no | |
| gabinete, quando eu me achava entre jornaes e autos. Ezequiel entrava | |
| turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do | |
| pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora | |
| uma aversão que mal podia disfarçar, tanto a ella como aos outros. Não | |
| podendo encobrir inteiramente esta disposição moral, cuidava de me | |
| não fazer encontradiço com elle, ou só o menos que pudesse; ora tinha | |
| trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora saía ao domingo para | |
| ir passear pela cidade o arrebaldes o meu mal secreto. | |
| CXXXIII | |
| Uma ideia. | |
| Um dia,--era uma sexta feira,--não pude mais. Certa ideia, que | |
| negrejava em mim, abriu as azas e entrou a batel-as de um lado para | |
| outro, como fazem as ideias que querem sair. O ser sexta-feira creio | |
| que foi acaso, mas tambem póde ter sido proposito; fui educado no | |
| terror daquelle dia; ouvi cantar balladas em casa, vindas da roça e | |
| da antiga metropole, nas quaes a sexta-feira era o dia de agouro. | |
| Entretanto, não havendo almanaks no cerebro, é provavel que a ideia | |
| não batesse as azas senão pela necessidade que sentia do vir ao ar e | |
| á vida. A vida é tão bella que a mesma ideia da morte precisa de vir | |
| primeiro a ella, antes de se ver cumprida. Já me vás entendendo; lê | |
| agora outro capitulo. | |
| CXXXIV | |
| O dia de sabbado. | |
| A ideia saiu finalmente do cerebro. Era noite, e não pude dormir, por | |
| mais que a sacudisse de mim. Tambem nenhuma noite me passou tão curta. | |
| Amanheceu, quando cuidava não ser mais que uma ou duas horas. Sai, | |
| suppondo deixar a ideia em casa; ella veiu commigo. Cá fóra tinha a | |
| mesma côr escura, as mesmas azas trepidas, e posto avoasse com ellas, | |
| era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse as | |
| cousas externas, mas via-as atra vez della, com a côr mais pallida que | |
| de costume, e sem se demorarem nada. | |
| Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, | |
| comprei uma substancia, que não digo, para não espertar o desejo de | |
| proval-a. A pharmacia falliu, é verdade; o dono fez-se banqueiro, e | |
| o banco prospera. Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha | |
| alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, | |
| porque o premio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui a | |
| casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a titulo de visita. Ou de | |
| verdade ou por illusão, tudo alli me pareceu melhor nesse dia, minha | |
| mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração, prima Justina da | |
| lingua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projecto. Que | |
| era preciso para viver? Nunca mais deixar aquella casa, ou prender | |
| aquella hora a mim mesmo... | |
| CXXXV | |
| Othello. | |
| Jantei fóra. De noite fui ao theatro. Representava-se justamente | |
| _Othello_, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assumpto, | |
| e estimei a coincidencia. Vi as grandes raivas do mouro, por causa | |
| de um lenço,--um simples lenço!--e aqui dou materia á meditação dos | |
| psychologos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar á | |
| observação de que um lenço bastou a accender os ciumes de Othello e | |
| compor a mais sublime tragedia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje | |
| são precisos os proprios lençóes; alguma vez nem lençóes ha, e valem | |
| só as camisas. Taes eram as ideias que me iam passando pela cabeça, | |
| vagas e turvas, á medida que o mouro rolava convulso, e Iago distilava | |
| a sua calumnia. Nos intervallos não me levantava da cadeira; não queria | |
| expôr-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quasi todas | |
| nos camarotes, emquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a | |
| mim mesmo se alguma daquellas não teria amado alguem que jazesse agora | |
| no cemiterio, e vinham outras incoherencias, até que o panno subia e | |
| continuava a peça. O ultimo acto mostrou-me que não eu, mas Capitú | |
| devia morrer. Ouvi as supplicas de Desdemona, as suas palavras amorosas | |
| e puras, e a furia do mouro, e a morte que este lhe deu entre applausos | |
| freneticos do publico. | |
| --E era innocente, vinha eu dizendo rua abaixo;--que faria o publico, | |
| se ella devéras fosse culpada, tão culpada como Capitú? E que morte lhe | |
| daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, | |
| um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, | |
| e o pó seria lançado ao vento, como eterna extincção... | |
| Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade, um quasi nada, | |
| mas o bastante para ir até á manhã. Vi as ultimas horas da noite e | |
| as primeiras do dia, vi os derradeiros passeadores e os primeiros | |
| varredores, as primeiras carroças, os primeiros ruidos, os primeiros | |
| albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca mais | |
| voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não | |
| tornaria a contemplar o mar da Gloria, nem a serra dos Orgãos, nem a | |
| fortaleza de Santa-Cruz e as outras. A gente que passava não era tanta, | |
| como nos dias communs da semana, mas era já numerosa e ia a algum | |
| trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais nada. | |
| Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante-pé, e metti-me | |
| no gabinete; iam dar seis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em | |
| mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a ultima, dirigida a | |
| Capitú. Nenhuma das outras era para ella; senti necessidade de lhe | |
| dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte. Escrevi | |
| dous textos. O primeiro queimei-o por ser longo e diffuso. O segundo | |
| continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso | |
| passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de | |
| Escobar e da necessidade de morrer. | |
| CXXXVI | |
| A chicara de café. | |
| O meu plano foi esperar o café, dissolver nelle a droga e ingeril-a. | |
| Até lá, não tendo esquecido de todo a minha historia romana, lembrou-me | |
| que Catão, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha | |
| Platão commigo; mas um tomo truncado de Plutarcho, em que era narrada | |
| a vida do celebre romano, bastou-me a occupar aquelle pouco tempo, e, | |
| para em tudo imital-o, estirei-me no canapé. Nem era só imital-o nisso; | |
| tinha necessidade de incutir em mim a coragem delle, assim como elle | |
| precisára dos sentimentos do philosopho, para intrepidamente morrer. Um | |
| dos males da ignorancia é não ter este remedio á ultima hora. Ha muita | |
| gente que se mata sem elle, e nobremente expira; mas estou que muita | |
| mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa especie de | |
| cocaina moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer | |
| suspeita de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé | |
| de mim o livro de Plutarcho, nem ser dada a noticia nas gazetas com a | |
| da côr das calças que eu então vestia, assentei de pôl-o novamente no | |
| seu logar, antes de beber o veneno. | |
| O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a | |
| mesa onde ficára a chicara. Já a casa estava em rumores; era tempo | |
| de acabar commigo. A mão tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a | |
| droga embrulhada. Ainda assim tive animo de despejar a substancia | |
| na chicara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memoria em | |
| Desdemona innocente; o espectaculo da vespera vinha intrometter-se na | |
| realidade da manhã. Mas a photographia de Escobar deu-me o animo que me | |
| ia faltando; lá estava elle, com a mão nas costas da cadeira, a olhar | |
| ao longe... | |
| --Acabemos com isto, pensei. | |
| Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitú e o | |
| filho saissem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, | |
| entrei a passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o | |
| entrar e correr a mim bradando: | |
| --Papae! papae! | |
| Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havel-o | |
| inteiramente esquecido, mas crê que foi bello e tragico. | |
| Effectivamente, a figura do pequeno fez-me recuar até dar de costas na | |
| estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta dos pés, | |
| como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me: | |
| --Papae! papae! | |
| CXXXVII | |
| Segundo impulso. | |
| Se eu não olhasse para Ezequiel, é provavel que não estivesse aqui | |
| escrevendo este livro, porque o meu primeiro impeto foi correr ao café | |
| e bebel-o. Cheguei a pegar na chicara, mas o pequeno beijava-me a mão, | |
| como de costume, e a vista delle, como o gesto, deu-me outro impulso | |
| que me custa dizer aqui; mas vã lá, diga-se tudo. Chamem-me embora | |
| assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo | |
| impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomára | |
| café. | |
| --Já, papae; vou á missa com mamãe. | |
| --Toma outra chicara, meia chicara só. | |
| --E papae? | |
| --Eu mando vir mais; anda, bebe! | |
| Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a chicara, tão tremulo que quasi a | |
| entornei, mas disposto a fazel-a cair pela guela abaixo, caso o sabor | |
| lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio... Mas não | |
| sei que senti que me fez recuar. Puz a chicara em cima da mesa, e dei | |
| por mim a beijar doudamente a cabeça do menino. | |
| --Papae papae! exclamava Ezequiel. | |
| --Não, não, eu não sou teu pae! | |
| CXXXVIII | |
| Capitú que entra. | |
| Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitú deante de mim. | |
| Eis ahi outro lance, que parecerá de theatro, e é tão natural como o | |
| primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam á missa, e Capitú não saía | |
| sem falar-me. Era já um falar secco e breve; a mór parte das vezes, eu | |
| nem olhava para ella. Ella olhava sempre, esperando. | |
| Desta vez, ao dar com ella, não sei se era dos meus olhos, mas Capitú | |
| pareceu-me livida. Seguiu-se um daquelles silencios, a que, sem mentir, | |
| se pódem chamar de um seculo, tal é a extensão do tempo nas grandes | |
| crises. Capitú recompoz-se; disse ao filho que se fosse embora, e | |
| pediu-me que lhe explicasse... | |
| --Não ha que explicar, disse eu. | |
| --Ha tudo; não entendo as tuas lagrimas nem as de Ezequiel. Que houve | |
| entre vocês? | |
| --Não ouviu o que lhe disse? | |
| Capitú respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que | |
| ouvira tudo claramente, mas confessal-o seria perder a esperança do | |
| silencio e da reconciliação; por isso negou a audiencia e confirmou | |
| unicamente a vista. Sem lhe contar o episodio do café, repeti-lhe as | |
| palavras do final do capitulo. | |
| --O que? perguntou ella como se ouvira mal. | |
| --Que não é meu filho. | |
| Grande foi a estupefacção de Capitú, e não menor a indignação que | |
| lhe succedeu, tão naturaes ambas que fariam duvidar as primeiras | |
| testemunhas de vista do nosso fôro. Já** ouvi que as ha para varios | |
| casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a pessoa que me | |
| contou isto acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas | |
| alugadas, a minha era verdadeira; a propria natureza jurava por si, e | |
| eu não queria duvidar della. Assim que, sem attender á linguagem de | |
| Capitú, aos seus gestos, á dôr que a retorcia, a cousa nenhuma, repeti | |
| as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar. | |
| Após alguns instantes, disse-me ella: | |
| --Só se póde explicar tal injuria pela convicção sincera; entretanto, | |
| você que era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra | |
| de desconfiança. Que é que lhe deu tal ideia? Diga,--continuou vendo | |
| que eu não respondia nada,--diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir | |
| o resto, não póde ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção? | |
| Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me d'aqui, mas diga tudo primeiro. | |
| --Ha cousas que se não dizem. | |
| --Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo. | |
| Tinha-se sentado n'uma cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto | |
| confusa, o porte não era de accusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não | |
| teimasse. | |
| --Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha | |
| que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso | |
| mais! | |
| --A separação é cousa decidida, redargui pegando-lhe na proposta. Era | |
| melhor que a fizessemos por meias palavras ou em silencio; cada um iria | |
| com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vae o que | |
| lhe posso dizer, e é tudo. | |
| Não disse tudo; mal pude alludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe | |
| o nome. Capitú não poude deixar de rir, de um riso que eu sinto | |
| não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente ironico e | |
| melancolico: | |
| --Pois até os defunctos! Nem os mortos escapam aos seus ciumes! | |
| Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, emquanto | |
| eu, que não pedia outra cousa mais que a plena justificação della, | |
| disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitú olhou para | |
| mim com desdem, e murmurou: | |
| --Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de | |
| Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminario, não | |
| acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem | |
| dizer mais nada. | |
| CXXXIX | |
| A photographia. | |
| Palavra que estive a pique de crer que era victima de uma grande | |
| illusão, uma phantasmagoria de allucinado; mas a entrada repentina de | |
| Ezequiel, gritando:--«Mamãe! mamãe! é hora da missa!» restituiu-me | |
| á consciencia da realidade. Capitú e eu, involuntariamente, olhámos | |
| para a photographia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez | |
| a confusão della fez-se confissão pura. Este era aquelle; havia por | |
| força alguma photographia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno | |
| Ezequiel. De bocca, porém, não confessou nada; repetiu as ultimas | |
| palavras, puxou do filho e sairam para a missa. | |
| CXL | |
| Volta da egreja. | |
| Ficando só, era natural pegar do café e bebel-o. Pois, não, senhor; | |
| tinha perdido o gosto á morte. A morte era uma solução; eu acabava de | |
| achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva, e deixava | |
| a porta aberta á reparação, se devesse havel-a. Não disse _perdão_, | |
| mas _reparação_, isto é, justiça. Qualquer que fosse a razão do acto, | |
| rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitú. Este foi mais | |
| demorado que de costume; cheguei a temer que ella houvesse ido á casa | |
| de minha mãe, mas não foi. | |
| --Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitú ao voltar | |
| da egreja; ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensavel, e | |
| estou ás suas ordens. | |
| Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um | |
| gesto de recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade ou com | |
| a propria incerteza em que eu podia estar da paternidade do outro, | |
| mas falhou tudo. Acaso haveria em mim um homem novo, um que apparecia | |
| agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso era | |
| um homem apenas encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e fariamos o que | |
| eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito. | |
| No intervallo, evocára as palavras do finado Gurgel, quando me | |
| mostrou em casa delle o retrato da mulher, parecido com Capitú. Has | |
| de lembrar-te dellas; se não, relê o capitulo, cujo numero não ponho | |
| aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. Reduzem-se | |
| a dizer que ha taes semelhanças inexplicaveis... Pelo dia adeante, e | |
| nos outros dias, Ezequiel ia ter commigo ao gabinete, e as feições | |
| do pequeno davam ideia clara das do outro, ou eu ia attentando | |
| mais nellas. De envolta, lembravam-me episodios vagos e remotos, | |
| palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não | |
| poz malicia, e a que faltou o meu velho ciume. Uma vez em que os fui | |
| achar sósinhos e calados, um segredo que me fez rir, uma palavra | |
| della sonhando, todas essas reminiscencias vieram vindo agora, em tal | |
| atropello que me atordoaram... E porque os não esganei um dia, quando | |
| desviei os olhos da rua onde estavam duas andorinhas trepadas no fio | |
| telegraphico? Dentro, as minhas outras andorinhas estavam trepadas no | |
| ar, os olhos enfiados nos olhos, mas tão cautelosos que se desenfiaram | |
| logo, dizendo-me uma palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro | |
| das andorinhas de fóra, e acharam-lhe graça; Escobar declarou que, | |
| para elle, seria melhor se as andorinhas, em vez de trepadas no fio | |
| de arame, estivessem á mesa do jantar cosidas. «Nunca comi os ninhos | |
| dellas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os inventaram.» E | |
| ficámos a tratar dos chins e dos classicos que falaram delles, emquanto | |
| Capitú, confessando que a aborreciamos, foi a outros cuidados. Agora | |
| lembrava-me tudo o que então me pareceu nada. | |
| CXLI | |
| A solução. | |
| Aqui está o que fizemos. Pegámos em nós e fomos para a Europa, | |
| não passear, nem ver nada, novo nem velho; parámos na Suissa. Uma | |
| professora do Rio-Grande, que foi comnosco, ficou de companhia a | |
| Capitú, ensinando a lingua materna a Ezequiel, que apprenderia o resto | |
| nas escolas do paiz. Assim regulada a vida, tornei ao Brazil. | |
| Ao cabo de alguns mezes, Capitú começára a escrever-me cartas, a que | |
| respondi com brevidade e sequidão. As della eram submissas, sem odio, | |
| acaso affectuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. | |
| Embarquei um anno depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o | |
| mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam della, queriam noticias, | |
| e eu dava-lh'as, como se acabasse de viver com ella; naturalmente as | |
| viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a | |
| opinião. Um dia, finalmente... | |
| CXLII | |
| Uma santa. | |
| Entenda-se que, se nas viagens que fiz á Europa, José Dias não foi | |
| commigo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio | |
| Cosme, quasi invalido, e a minha mãe, que envelheceu depressa. Tambem | |
| elle estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e | |
| as palavras que me dizia, os gestos de lenço, os proprios olhos que | |
| enxugava eram taes que me commoviam tambem. A ultima vez não foi o | |
| bordo. | |
| --Venha... | |
| --Não posso. | |
| --Está com medo? | |
| --Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei sé me verá mais; | |
| creio que vou para a outra Europa, a eterna... | |
| Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemiterio de S. | |
| João Baptista uma sepultura sem nome, com esta unica indicação: _Uma | |
| santa._ É ahi. Fiz fazer essa inscripção com alguma difficuldade. O | |
| esculptor achou-a exquisita; o administrador do cemiterio consultou o | |
| vigario da parochia; este ponderou-me que as santas estão no altar e no | |
| ceu. | |
| --Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquella sepultura está | |
| uma canonisada. A minha ideia é dar com tal palavra uma definição | |
| terrena de todas as virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto é | |
| assim que, sendo a modestia uma dellas, desejo conserval-a postuma, não | |
| lhe escrevendo o nome. | |
| --Todavia, o nome, afiliação, as datas... | |
| --Quem lhe importará com datas, filiação, nem nomes, depois que eu | |
| acabar? | |
| --Quer dizer que era uma santa senhora, não? | |
| --Justamente. O protonotario Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui o | |
| que lhe digo. | |
| --Nem eu contesto a verdade, hesito só na formula. Conheceu então o | |
| protonotario? | |
| --Conheci-o. Era um padre-modelo. | |
| --Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigário. | |
| --E possuia algumas prendas de sociedade, disse eu; lá em casa sempre | |
| ouvi que era insigne parceiro ao gamão... | |
| --Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigario. Um dado de | |
| mestre! | |
| --Então, parece-lhe...? | |
| --Uma vez que não ha outro sentido, nem poderia havel-o, sim, senhor, | |
| admitte-se... | |
| José Dias assistiu a estas diligencias, com grande melancolia. No fim, | |
| quando saimos, disse mal do padre, chamou-lhe meticuloso. Só lhe achava | |
| desculpa por não ter conhecido minha mãe, nem elle nem os outros homens | |
| do cemiterio. | |
| --Não a conheceram; se a conhecessem, mandariam esculpir _santissima._ | |
| CXLIII | |
| O ultimo superlativo. | |
| Não foi o ultimo superlativo de José Dias. Outros teve que não vale | |
| a pena escrever aqui, até que veiu o ultimo, o melhor delles, o mais | |
| doce, o que lhe fez da morte um pedaço de vida. Já então morava | |
| commigo; posto que minha mãe lhe deixasse uma pequena lembrança, veiu | |
| dizer-me que, com legado ou sem elle, não se separaria de mim. Talvez a | |
| esperança delle fosse enterrar-me. Correspondia-se com Capitú, a quem | |
| pedia que lhe mandasse o retrato de Ezequiel; mas Capitú ia adiando a | |
| remessa de correio a correio, até que elle não pediu mais nada, a não | |
| ser o coração do joven estudante; pedia-lhe tambem que não deixasse de | |
| falar a Ezequiel no velho amigo do pae e do avô, «destinado pelo ceu | |
| a amar o mesmo sangue.» Era assim que elle preparava os cuidados da | |
| terceira geração; mas a morte veiu antes de Ezequiel. A doença foi | |
| rapida. Mandei chamar um medico homeopatha. | |
| --Não, Bentinho, disse elle; basta um allopatha; em todas as escolas se | |
| morre. Demais, foram ideias da mocidade, que o tempo levou; converto-me | |
| á fé de meus paes. A allopathia é o catholicismo da medicina... | |
| Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o ceu | |
| estava lindo, e pediu que abrissemos a janella. | |
| --Não, o ar póde fazer-lhe mal. | |
| --Que mal? Ar é vida. | |
| Abrimos a janella. Realmente, estava um ceu azul e claro. José Dias | |
| soergueu-se e olhou para fóra; após alguns instantes, deixou cair a | |
| cabeça, murmurando: Lindissimo! Foi a ultima palavra que proferiu neste | |
| mundo. Pobre José Dias! Porque hei de negar que chorei por elle? | |
| CXLIV | |
| Uma pergunta tardia. | |
| Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste | |
| mundo, mas não é provavel. Tenho-me feito esquecer. Móro longe e saio | |
| pouco. Não é que haja effectivamente ligado as duas pontas da vida. | |
| Esta casa do Engenho Novo, comquanto reproduza a de Matacavallos, | |
| apenas me lembra aquella, e mais por effeito de comparação e de | |
| reflexão que de sentimento. Já disse isto mesmo. | |
| Hão de perguntar-me por que razão, tendo a propria casa velha, na mesma | |
| rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzil-a nesta. A | |
| pergunta devia ser feita a principio, mas aqui vae a resposta. A razão | |
| é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro | |
| uma longa visita de inspecção por alguns dias, e toda a casa me | |
| desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba | |
| velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu | |
| deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de recto, como outr'ora, tinha | |
| agora um ar de ponto de interrogação; naturalmente pasmava do intruso. | |
| Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que alli deixasse, e | |
| não achei nenhum. Ao contrario, a ramagem começou a sussurrar alguma | |
| cousa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs | |
| novas. Ao pé dessa musica sonora e jovial, ouvi tambem o grunhir dos | |
| porcos, especie de troça concentrada e philosophica. | |
| Tudo me era extranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, | |
| mais tarde, quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta | |
| reproducção por explicações que dei ao architecto segundo contei em | |
| tempo. | |
| CXLV | |
| O regresso. | |
| Ora, foi já nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almoçar, | |
| recebi um cartão com este nome: | |
| EZEQUIEL A. DE SANTIAGO | |
| --A pessoa está ahi? perguntei ao criado. | |
| --Sim, senhor; ficou esperando. | |
| Não fui logo, logo; fil-o esperar um dez ou quinze minutos na sala. | |
| Só depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, | |
| abraçal-o, falar-lhe na mãe. A mãe,--creio que ainda não disse que | |
| estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suissa. Acabei de | |
| vestir-me ás pressas. Quando saí do quarto, tomei ares de pae, um pae | |
| entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com | |
| um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. | |
| Vim cauteloso, e não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e | |
| voltou-se depressa. Conheceu-me pelos retratos e correu para mim. Não | |
| me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e joven companheiro do | |
| seminario de S. José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo, e, | |
| salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava á | |
| moderna, naturalmente, e as maneiras eram differentes, mas o aspecto | |
| geral reproduzia a pessoa morta. Era o proprio, o exacto, o verdadeiro | |
| Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pae. Vestia de luto | |
| pela mãe; eu tambem estava de preto. Sentámo-nos. | |
| --Papae não faz differença dos ultimos retratos, disse-me elle. | |
| A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancezado. Expliquei-lhe | |
| que realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatorio | |
| para ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo | |
| dava animação á cara delle, e o meu collega do seminario ia resurgindo | |
| cada vez mais do cemiterio. Eil-o aqui, deante de mim, com egual riso | |
| e maior respeito; total, o mesmo obsequio e a mesma graça. Anciava por | |
| ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, | |
| como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido. | |
| --Morreu bonita, concluiu. | |
| --Vamos almoçar. | |
| Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de | |
| aborrecimento, é verdade; a principio doeu-me que Ezequiel não fosse | |
| realmente meu filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz | |
| tem saido á mae, eu acabava crendo tudo, tanto mais facilmente quanto | |
| que elle parecia haver-me deixado na vespera, evocava a meninice, | |
| scenas e palavras, a ida para o collegio... | |
| --Papae ainda se lembra quando me levou para o collegio? perguntou | |
| rindo. | |
| --Pois não hei de lembrar-me? | |
| --Era na Lapa; eu ia desesperado, e papae não parava, dava-me cada | |
| puxão, e eu com as perninhas.... Sim, senhor, acceito. | |
| Estendeu o copo ao vinho que eu lhe offerecia, bebeu um gole, e | |
| continuou a comer. Escobar comia assim tambem, com a cara mettida no | |
| prato. Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente os de | |
| archeologia, que era a sua paixão. Falava da antiguidade com amor, | |
| contava o Egypto e os seus milhares de seculos, sem se perder nos | |
| algarismos; tinha a cabeça arithmetica do pae. Eu, posto que a ideia | |
| da paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da | |
| resurreição. Ás vezes, fechava os olhos para não ver gestos nem nada, | |
| mas o diabrete falava e ria, e o defuncto falava e ria por elle. | |
| Não havendo remedio senão ficar com elle, fiz-me pae deveras. A ideia | |
| de que pudesse ter visto alguma photographia de Escobar, que Capitú por | |
| descuido levasse comsigo, não me acudiu, nem, se acudisse, persistiria. | |
| Ezequiel cria em mim, como na mãe. Se fosse vivo José Dias, acharia | |
| nelle a minha propria pessoa. Prima Justina quiz vel-o, mas estando | |
| enferma, pediu-me que o levasse lá. Conhecia aquella parenta. Creio que | |
| o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no moço o debuxo | |
| que por ventura houvesse achado no menino. Seria um regalo ultimo; | |
| atalhei-o a tempo. | |
| --Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vel-a, qualquer | |
| emoção póde trazer-lhe a morte. Iremos vel-a, quando ficar melhor. | |
| Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ella descança no | |
| Senhor ou como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixão e não a | |
| conheceu, nem podia, tão outra a fizeram os annos e a morte. No caminho | |
| para o cemiterio, iam-lhe lembrando uma porção de cousas, alguma rua, | |
| alguma torre, um trecho de praia, e era todo alegria. Assim acontecia | |
| sempre que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as recordações | |
| que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-se que muitas destas | |
| fossem as mesmas que elle deixára, como se as casas morressem meninas. | |
| Ao cabo de seis mezes, Ezequiel falou-me em uma viagem á Grecia, ao | |
| Egypto, e á Palestina, viagem scientifica, promessa feita a alguns | |
| amigos. | |
| --De que sexo? perguntei rindo. | |
| Sorriu vexado, e respondeu-me que as mulheres eram creaturas tão | |
| da moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruina de trinta | |
| seculos. Eram dous collegas da universidade. Prometti-lhe recursos, | |
| e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Commigo disse que | |
| uma das consequencias dos amores furtivos do pae era pagar eu as | |
| archeologias do filho; antes lhe pagasse a lepra.... Quando esta ideia | |
| me atravessou o cerebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no | |
| rapaz, e quiz apertal-o ao coração, mas recuei; encarei-o depois, como | |
| se faz a um filho de verdade; os olhos que elle me deitou foram ternos | |
| e agradecidos. | |
| CXLVI | |
| Não houve lepra. | |
| Não houve lepra, mas ha febres por todas essas terras humanas, sejam | |
| velhas ou novas. Onze mezes depois, Ezequiel morreu de uma febre | |
| typhoide, e foi enterrado nas immediações de Jerusalem, onde os dous | |
| amigos da universidade lhe levantaram um tumulo com esta inscripção, | |
| tirada do propheta Ezequiel, em grego: «Tu eras perfeito nos teus | |
| caminhos.» Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da | |
| sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que elle levava; | |
| pagaria o triplo para não tornar a vel-o. | |
| Como quizesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que | |
| era exacto, mas tinha ainda um complemento: «Tu eras perfeito nos teus | |
| caminhos, _desde o dia da tua creação._» Parei e perguntei calado: | |
| «Quando seria o dia da creação de Ezequiel?» Ninguem me respondeu. Eis | |
| ahi mais um mysterio para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de | |
| tudo, jantei bem e fui ao theatro. | |
| CXLVII | |
| A exposição retrospectiva. | |
| Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não | |
| ficou ahi para um canto como uma flor livida e solitaria. Não lhe dei | |
| essa côr ou descôr. Vivi o melhor que pude, sem me faltarem amigas | |
| que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. | |
| Ellas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição | |
| retrospectiva, e, ou se fartam de vel-a, ou a luz da sala esmorece. Uma | |
| só dessas visitas tinha carro á porta e cocheiro de libré. As outras | |
| iam modestamente, _calcante pede_, e, se chovia, eu é que ia buscar um | |
| carro de praça, e as mettia dentro, com grandes despedidas, e maiores | |
| recommendações: | |
| --Levas o catalogo? | |
| --Levo; até amanhã. | |
| --Até amanhã. | |
| Não voltavam mais. Eu ficava á porta, esperando, ia até á esquina, | |
| espiava, consultava o relogio, e não via nada nem ninguem. Então, se | |
| apparecia outra visita, dava-lhe o braço, entravamos, mostrava-lhe | |
| as paizagens, os quadros historicos ou de genero, uma aquarella, | |
| um pastel, uma _gouache_, e tambem esta cançava, e ia embora com o | |
| catalogo na mão.... | |
| CXLVIII | |
| E bem, e o resto? | |
| Agora, porque é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a | |
| primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos | |
| de ressaca, nem os de cigana obliqua e dissimulada. Mas não é este | |
| propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitú da praia | |
| da Gloria já estava dentro da de Matacavallos, ou se esta foi mudada | |
| naquella por effeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, | |
| se soubesse dos meus primeiros ciumes, dir-me-hia, como no seu cap. IX, | |
| vers. 1: «Não tenhas ciumes de tua mulher para que ella não se metta a | |
| enganar-te com a malicia que apprender de ti.» Mas eu creio que não, | |
| e tu concordarás commigo; se te lembras bem da Capitú menina, has de | |
| reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. | |
| E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a summa das | |
| summas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e | |
| o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos tambem, quiz o | |
| destino que acabassem juntando-se e enganando-me.... A terra lhes seja | |
| leve! Vamos á _Historia dos suburbios._ | |
| FIM | |
| INDICE | |
| Capitulo I Do titulo | |
| II Do livro | |
| III A denuncia | |
| IV Um dever amarissimo! | |
| V O aggregado | |
| VI Tio Cosme | |
| VII D. Gloria | |
| VIII É tempo! | |
| IX A opera | |
| X Acceito a theoria | |
| XI A promessa | |
| XII Na varanda | |
| XIII Capitú | |
| XIV A inscripção | |
| XV Outra voz repentina | |
| XVI O administrador interino | |
| XVII Os vermes | |
| XVIII Um plano | |
| XIX Sem falta | |
| XX Mil padre-nossos e mil ave-marias | |
| XXI Prima Justina | |
| XXII Sensações alheias | |
| XXIII Prazo dado | |
| XXIV De mãe e de servo | |
| XXV No Passeio Publico | |
| XXVI As leis são bellas | |
| XXVII Ao portão | |
| XXVIII Na rua | |
| XXIX O imperador | |
| XXX O Santissimo | |
| XXXI As curiosidades de Capitú | |
| XXXII Olhos de ressaca | |
| XXXIII O penteado | |
| XXXIV Sou homem! | |
| XXXV O protonotario apostolico | |
| XXXVI Ideia sem pernas e ideia sem braços | |
| XXXVII A alma é cheia de mysterios | |
| XXXVIII Que susto, meu Deus! | |
| XXXIX A vocação | |
| XL Uma egua | |
| XLI A audiencia secreta | |
| XLII Capitú reflectindo | |
| XLIII Você tem medo? | |
| XLIV O primeiro filho | |
| XLV Abane a cabeça, leitor | |
| XLVI As pazes | |
| XLVII «A senhora saiu» | |
| XLVIII Juramento do poço | |
| XLIX Uma vela aos sabbados | |
| L Um meio termo | |
| LI Entre luz e fusco | |
| LII O velho Padua | |
| LIII A caminho! | |
| LIV Panegyrico de Santa Monica | |
| LV Um soneto | |
| LVI Um seminarista | |
| LVII De preparação | |
| LVI O tratado | |
| LIX Convivas de boa memoria | |
| LX Querido opusculo | |
| LXI A vacca de Homero | |
| LXII Uma ponta de Iago | |
| LXII Metades de um sonho | |
| LXIV Uma ideia e um escrupulo | |
| LXV A dissimulação | |
| LXVI Intimidade | |
| LXVI Um peccado | |
| LXVII Adiemos a virtude | |
| LXIX A missa | |
| LXX Depois da missa | |
| LXXI Visita de Escobar | |
| LXXII Uma reforma dramatica | |
| LXXIH O contra-regra | |
| LXXIV A presilha | |
| LXXV O desespero | |
| LXXVI Explicação | |
| LXXVII Prazer das dôres velhas | |
| LXXVIII Segredo por segredo | |
| LXXIX Vamos ao capitulo | |
| LXXX Venhamos ao capitulo | |
| LXXXI Uma palavra | |
| LXXXII O canapé | |
| LXXXIII O retrato | |
| LXXXIV Chamado | |
| LXXXV O defuncto | |
| LXXXVI Amai, rapazes | |
| LXXXVII A sege | |
| LXXXVIII Um pretexto honesto | |
| LXXXIX A recusa | |
| XC A polemica | |
| XCI Achado que consola | |
| XCII O diabo não é tão feio como se pinta | |
| XCIII Um amigo por um defuncto | |
| XCIV Ideias arithmeticas | |
| XCV O papa | |
| XCVI Um substituto | |
| XCVII A saida | |
| XCVIII Cinco annos | |
| XCIX O filho é a cara do pae | |
| C «Tu serás feliz, Bentinho!» | |
| CI No ceu | |
| CII De casada | |
| CIII A felicidade tem boa alma | |
| CIV As pyramides | |
| CV Os braços | |
| CVI Dez libras esterlinas | |
| CVII Ciumes do mar | |
| CVIII Um filho | |
| CIX Um filho unico | |
| CX Rasgos da infancia | |
| CXI Contado depressa | |
| CXII As imitações de Ezequiel | |
| CXIII Embargos de terceiro | |
| CXIV Em que se explica o explicado | |
| CXV Duvidas sobre duvidas | |
| CXVI Filho do homem | |
| CXVII Amigos proximos | |
| CXVIII A mão de Sancha | |
| CXIX Não faça isso, querida | |
| CXX Os autos | |
| CXXI A catastrophe | |
| CXXII O enterro | |
| CXXIII Olhos de ressaca | |
| CXXIV O discurso | |
| CXXV Uma comparação | |
| CXXVI Scismando | |
| CXXVII O barbeiro | |
| CXXVIII Punhado de successos | |
| CXXIX A D. Sancha | |
| CXXX Um dia | |
| CXXXI Anterior ao anterior | |
| CXXXII O debuxo e o colorido | |
| CXXXIII Uma ideia | |
| CXXXIV O dia de sabbado | |
| CXXXV Othello | |
| CXXXVI A chicara de café | |
| CXXXVII Segundo impulso | |
| CXXXVIII Capitú que entra | |
| CXXXIX A photographia | |
| CXL Volta da egreja | |
| CXLI A solução | |
| CXLII Uma santa | |
| CXLIII O ultimo superlativo | |
| CXLIV Uma pergunta tardia | |
| CXLV O regresso | |
| CXLVI Não houve lepra | |
| CXLVII A exposição retrospectiva | |
| CXLVIII É bem, e o resto? | |
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